E a estrear a secção Ficções da Épica, eis que João Ventura nos oferece um conto onde propõe uma interessante invocação de um passado medieval que acompanha os primeiros passados dados na Imprensa por Gutenberg. Mas por trás do fascinante ambiente dos primeiros livros e bibliotecas, escondem-se obscuras tentativas de libertar a Humanidade da morte…
Pode ler o conto, acedendo ao link.
ETERNIDADE
por
João Ventura
A porta é sólida. O revestimento, em talha finamente trabalhada, foi recuperado de uma abadia medieval, bombardeada durante a 2ª guerra mundial e quase totalmente destruída. Por debaixo da madeira polida pela passagem dos séculos é uma porta corta-fogo. Para mim não tem importância, mas é bom saber que os livros estão protegidos. A sala tem acesso reservado e por cima da porta está escrito: IDADE MÉDIA EUROPEIA.
A sala é grande. Prateleiras com livros até ao tecto formam corredores estreitos. A espaços, pequenas mesas de trabalho, providas do necessário: luz, terminal com gravador áudio e vídeo, scanner… Reina o silêncio, apenas perturbado pelo zumbido dos sistemas de climatização. Ao longo dos corredores, no tecto, o piscar vermelho ritmado dos detectores de incêndio.
Num dos extremos da sala há um conjunto de prateleiras com o rótulo: OCULTISMO, e numa delas, precisamente a terceira, quase na extremidade direita, está o Livro. E junto dessa prateleira, estou eu. Vigilante. À espera.
Não é possível definir o que eu sou. Alguns poderiam considerar-me um espírito, se a velha dicotomia corpo-espírito não fosse tão tosca. Sou uma… Presença, algo tão real como qualquer das pessoas que se movimenta por estes corredores e salas, mas de detecção impossível mesmo pelos mais sofisticados sensores.
A biblioteca é enorme. Por vezes, durante a noite, quando posso interromper a minha vigilância (a sala encerra ao fim da tarde), percorro-a demoradamente. Sempre me fascinaram, as bibliotecas. E esta, a Biblioteca da Europa, é uma das maiores existentes actualmente, contendo milhões e milhões de livros nos seus enormes bancos de dados. Desde a lei aprovada pelo Parlamento Europeu em 2020, as árvores são consideradas demasiado preciosas para serem destruídas apenas para fornecer suporte para informação. Abater uma árvore sem autorização é crime, punido com prisão e multas pesadíssimas. Contrabando ou venda ilegal de madeira ou papel envolve igualmente severas penas.
Dos livros em papel, os mais antigos estão guardados em salas de acesso reservado; só os possuidores de um passe A1 podem manusear esses livros de produção artesanal, anteriores à difusão em massa do século vinte. Os utilizadores normais têm de contentar-se com a leitura de um facsímile num dos muitos monitores espalhados pela biblioteca.
Mas nem sempre foram assim, as bibliotecas.
Eu vi-as evoluir, desde as salas escuras onde frades medievais, à luz de velas, copiavam textos e pintavam iluminuras em pergaminho, repositórios de conhecimento numa época em que este era escasso. Vi-as queimadas por multidões fanáticas e pacientemente reconstruídas por estudiosos dedicados, observei (e participei) em diversas batalhas da eterna guerra entre a luz e as trevas, entre o conhecimento e a ignorância. Foi essa minha paixão pelo conhecimento que fez com que eu estivesse junto de Gutenberg antes de ele imprimir a famosa Bíblia; sim, porque houve um livro impresso antes da Bíblia, e é por causa desse Livro que eu estou aqui, à espera. Porque Eles decidiram que eu seria o Guarda do Livro.
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Encontrei Johannes Gensfleisch, conhecido por Gutenberg, em Estrasburgo, corria o ano de 1435. Ele trabalhava então na lapidação de pedras preciosas, e eu era já um adepto, um iniciado na filosofia alquímica. Longas tardes passei na sua oficina observando o seu trabalho paciente de redução de uma gema às dimensões perfeitas, derivadas dos sólidos pitagóricos. Comprava-lhe pó de diamante, que utilizava nas minhas manipulações. Sendo o diamante a pedra perfeita, pensava eu que teria uma influência positiva na Grande Transmutação.
Dois anos mais tarde acabou com o negócio da lapidação e passou a interessar-se pelo fabrico de espelhos… Eu, pela minha parte, tinha começado a duvidar da validade dos métodos que utilizara até então. Aquecimentos, destilações e condensações, misturas e separações cada vez me apareciam mais como caminhos sem saída, e a simples visão dos fornos, retortas e alambiques colocava no meu espírito uma questão insidiosa: Para quê? E regressei à leitura das obras de Roger Bacon, do Corpus Hermeticum, das traduções dos originais árabes e gregos, agora numa perspectiva menos literal e mais simbólica, com a convicção cada vez mais forte de que esta leitura “subterrânea” era a mais adequada à compreensão dessas grandes obras, com o objectivo de atingir o verdadeiro conhecimento.
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Há algumas semanas, um homem entrou na sala pela primeira vez. Nada de estranho, em princípio seria apenas mais um investigador… Mas em relação a este, senti imediatamente a inquietação, o fogo interior; muito diferente dos outros, onde apercebo a simples preocupação com a tese que andam a escrever ou com o artigo que estão a preparar. Olhou em volta, e dirigiu-se sem hesitação para a zona do Ocultismo. Mais um em busca do Caminho.
Tenho acompanhado o seu trabalho dia a dia. Lentamente, vai talhando um percurso no labirinto dos textos herméticos. Por duas ou três vezes já chegou a becos sem saída; não desiste, volta atrás à citação obscura, procura uma interpretação alternativa, começa numa nova direcção. Os Mestres deixam muitas vezes falsas pistas destinadas a testar os que procuram o Caminho, a separar o trigo do joio. São precisos conhecimento, discernimento e força de vontade para descobrir essas armadilhas e manter os passos na vereda que leva à Luz.
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Lembra-me aquele que eu fui, há centenas de anos. Depois de firmemente convencido que a descrição das manipulações laboratoriais eram apenas uma cobertura que ocultava o verdadeiro texto iniciático, voltei a ler os Mestres com atenção redobrada. Razões familiares – outros diriam o Destino – fizeram com que me deslocasse para Mogúncia, onde passei a viver. Um pequeno pecúlio herdado dos meus pais permitia que pudesse dedicar todo o meu tempo ao estudo intenso das grandes obras alquímicas. E quase sem o saber, quando o meu espírito se tinha despojado de tudo o que não fosse a paixão pelo conhecimento, descobri o Caminho!
Uma alegria sem limites apoderou-se de mim. A libertação da morte era um objectivo tão transcendente que a minha ideia foi imediatamente divulgar o Caminho.
Coloquei mais lenha na lareira, acendi uma vela nova e sentado à minha mesa de trabalho, comecei a escrever a descrição dos procedimentos a executar por quem quisesse atingir a imortalidade. Quando terminei, a lareira estava apagada, a luz do dia começava a entrar pela janela e à minha frente tinha um molho de folhas com a descrição do Caminho. Atirei-me para cima da cama e dormi um sono esgotado mas tranquilo.
No dia seguinte saí de casa e passeei pelas ruas, sem destino. Um problema dançava na minha cabeça: como fazer chegar às pessoas o conhecimento do Caminho. Era dia de mercado, e atravessando a praça, passei junto da banca de um mercador de metais, que negociava com um cliente; para minha surpresa, o cliente era Gutenberg, que eu não via há vários anos. Saudámo-nos efusivamente e decidimos celebrar o nosso reencontro. E alguns minutos depois, estávamos sentados a uma mesa da Estalagem do Cavalo Branco, e o estalajadeiro colocava à nossa frente pão de centeio, queijo de ovelha, um jarro de cerveja e dois pichéis.
Soube então que Gutenberg tinha começado a trabalhar com um novo processo de impressão, compondo o texto com caracteres móveis fundidos em metal. A técnica tinha vindo do Oriente; ele não me disse como tinha chegado ao seu conhecimento, mas contou-me que tinha introduzido alguns aperfeiçoamentos. Da algibeira do gibão tirou um objecto embrulhado num lenço, que abriu com cuidado: era a Ars Minor, uma gramática da autoria de Aelius Donatus, livro de pequeno formato para uso dos estudantes de Latim, impressa com a nova técnica. Folheei-o com interesse: a qualidade de impressão era notável. E assim, a solução para o meu problema vinha ter comigo: com esta invenção poderia fazer centenas, milhares de cópias e desta forma, atingir mais rapidamente o meu objectivo – libertar a humanidade da morte! No fim do segundo jarro de cerveja, tinha persuadido Gutenberg a imprimir o meu livro.
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O novo estudioso continua a fazer progressos na sua pesquisa. Consigo sentir as suas fases de desânimo e de entusiasmo. É metódico, esforçado, e conhece, além do latim, o grego, o árabe e o hebraico, o que lhe permite ir directamente às fontes em vez de ter de confiar em traduções, muitas vezes incorrectas, que induzem o leitor em erro.
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O processo de impressão avançou bem. Gutenberg estava quase tão entusiasmado como eu próprio. Até que chegou o dia em que terminámos a encadernação de todos os exemplares da primeira edição. Era tarde, despedimo-nos e fui para casa, levando comigo o primeiro exemplar que tínhamos produzido.
Alta noite, fui acordado com fortes pancadas na porta da rua. Era um mensageiro da parte de Gutenberg – a oficina estava a arder. Corri para lá e deparei-me com uma visão infernal: todo o interior estava em chamas, que saíam pela janela e pela porta. Já os vizinhos se tinham organizado e formado uma fila, passando baldes de água desde o chafariz localizado ao fundo da rua. Mas parecia que, cada vez que a água caía sobre as chamas, estas redobravam de intensidade. No final, todos os esforços foram em vão. O incêndio foi extinto de madrugada, tendo consumido as pranchas, os livros, tudo. No meio da desolação calcinada do que tinha sido a oficina de impressão, o desespero era o meu sentimento dominante. Tão perto, e agora outra vez tão longe…
Gutenberg teve uma crise de arrependimento, considerou que O Caminho era um livro herético e que o incêndio havia sido um castigo divino. Como uma penitência auto imposta, começou a compor a Bíblia latina; quando a terminou, aceitava com gratidão encomendas da Igreja para imprimir indulgências, querendo assim redimir-se do pecado que – achava ele – tinha cometido.
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Quanto a mim, Eles, os responsáveis do incêndio, revelaram-se pouco tempo depois. Eram os Imortais, e tinham seguido a minha actividade desde as primeiras tentativas no domínio da alquimia. Viram-me descobrir o Caminho e atravessar a Passagem, dessa forma tornando-me imortal, igual a Eles; deixaram-me escrever o Livro e imprimi-lo. E então provocaram o incêndio, para destruir todos os exemplares, excepto o primeiro a ser encadernado que eu tinha levado para casa. Com o seu perverso sentido de humor, e como castigo por ter tentado divulgar o Segredo, condenaram-me a guardar o Livro per saecula saeculorum… ou até Eles quererem. Com a missão de eliminar todos os que o lerem!
Tentei recusar, mas os tormentos que me infligiram cedo me fizeram obedecer. Os Imortais podem ser muito persuasivos… Para quem é eterno, felicidade, sofrimento, horror, são conceitos muito relativos… Ainda hoje evito pensar naquilo por que passei nessa altura.
No princípio, sofria muito sempre que tinha de matar alguém. E não foram poucos; a procura da vida eterna nesses tempos era um assunto muito sério. A um forcei-o a saltar do alto da torre da igreja; a outro, fiz com que cortasse as veias com a sua própria adaga. Ainda outro, induzi-o a misturar veneno no vinho que ia tomar à refeição e a bebê-lo de um só trago. Depois fui-me habituando e fui também refinando os meus processos. Aprendi muito sobre o funcionamento do organismo humano; é um sistema tão vulnerável, com tantos pontos fracos…
Quando percorro a biblioteca, interessa-me especialmente a área científica. Acompanho tudo o que se faz em relação ao prolongamento da vida, apesar de a direcção ser errada. Bioquímica, biologia molecular, genética, tudo isso me lembra as minhas tentativas toscas com os métodos da alquimia. A solução está noutro nível, na manipulação do espaço-tempo. Porque a matéria não é mais do que o espaço infinitamente denso. No século XX houve alguém que vislumbrou o problema, mas quando se apercebeu das implicações, achou que a bomba nuclear era uma arma menos perigosa. Talvez tivesse razão…
Lentamente, com o passar dos séculos, fui desenvolvendo um critério em relação ao método a usar. Se é alguém generoso que procura o Caminho, se sinto que nele existe o amor pelo seu semelhante, sou rápido e eficiente: nem chega a sentir quando a vida o abandona. É como accionar um interruptor.
Mas quando sinto em algum deles a sede do Poder, é diferente… Como o que veio antes deste, já não sei há quantos anos! Sentia-se o mal à sua volta. Deixei-o progredir ao longo das estantes, senti a sua excitação aumentar, permiti que descobrisse o Livro, vi-o encher-se de triunfo ao ler a descrição do Caminho. Quando ele ia começar a tomar notas, bastou-me eliminar alguns neurónios numa região específica do cérebro e pronto – ficou imobilizado como num instantâneo fotográfico. Caiu ao chão. Eu sentia a agitação na sua mente, o desespero de quem descobriu o Caminho e não o pode percorrer!
Ficou no chão até ser encontrado mais tarde por um funcionário da biblioteca que passava numa inspecção de rotina. Este contactou imediatamente a emergência médica e depois de o pessoal da ambulância o ter levado, arrumou cuidadosamente tudo o que ele tinha estado a consultar. No hospital onde foi internado, sobreveio-lhe uma febre altíssima e morreu ao fim de uma semana. Tecnicamente esteve em coma, mas a autópsia não identificou a causa. Penso que deve ter enlouquecido quando se deu conta que os seus contactos com o mundo exterior estavam definitivamente cortados, e que acabaria por morrer literalmente à vista da Passagem.
Mas ultimamente tenho-me aborrecido muito. O interesse pela literatura hermética tem diminuído. Passam-se anos sem ver uma cara nova neste sector. E o tédio é um sentimento tão desagradável…
Lá vem de novo o que procura o Caminho. Já não deve demorar a chegar ao fim da sua busca. Tenho que decidir a forma como o vou eliminar. Enfim, alguma coisa para me ocupar, ao fim de tantos anos…
Para os interessados em submeter textos à Épica, poderão enviar as vossas contribuições para o mail epica@netvisao.pt .Aceitam-se outras formas literárias que não o conto, conquanto a temática se limite ao fantástico. Os contos não deverão exceder 3000 palavras.
Os melhores textos que forem surgindo ao longo do ano 2005 serão publicados em versão bilingue na Acta do II Encontro Português do Fantástico a realizar em Novembro deste ano.
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