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Archive for the ‘Ficções’ Category

Tudo começou com um post no blogue do escritor galês Rhys Hughes. Nele, Rhys relembrava a invenção da autoria de Brian Aldiss, o género literário que ficou conhecido como as mini-sagas. A popularidade do género acabou por ocasionar um concurso de mini-sagas, nos anos 80, no jornal britânico Telegraph Sunday Magazine. Posteriormente, foram publicadas ao longo dos anos várias colectâneas editadas por Brian Aldiss sob o nome Mini-Sagas.

sagas

O esquema é muito simples. Uma história com princípio, meio e fim contada em exactamente cinquenta palavras. Sem o título incluído. Nas palavras do livro, Brevity is the soul of wit – and a mini-saga is the soul of brevity. A story of just fifty words, with a beginning, a middle and an end. Not just that, but a story that instantly captivates the reader with dreams and disasters, fantasies and fears, loves and hates, humour, morality, immorality, the everyday and the extraordinary. (Brevidade é a alma da sabedoria – e uma mini-saga é a alma da brevidade. Uma história de apenas cinquenta palavras, com um princípio, meio e fim. Não apenas isso, mas uma história que instantaneamente cativa o leitor com sonhos e desastres, fantasias e medos, amores e ódios, humor, moralidade, imoralidade, o quotidiano e o extraordinário).

Conversa puxa conversa, foi lançado o repto na lista de discussão da Yahoo dedicada a Ficção Científica portuguesa: um concurso de mini-sagas promovido por Luís Rodrigues cujo prémio consistiria num exemplar autografado de A Transformação de Martin Lake & Outras Histórias de Jeff Vandermeer. Os interessados teriam só cerca de três dias para provarem o que valem, até ao dia do lançamento do livro de Jeff Vandermeer a 24 de Julho.

Estabelecido o prazo, durante cerca de três dias a mailing-list foi recebendo um conjunto de mini-sagas, tanto do Brasil como Portugal. Humorísticos, sarcásticos ou irónicos, apocalípticos, viu-se um pouco de tudo. E ontem foi finalmente anunciado o vencedor, assim como várias menções honrosas. A Épica, atenta à qualidade de escrita dos participantes, ofereceu-se para publicar no site as mini-sagas premiadas. São elas cinco. Espero que gostem.

Mini-saga vencedora da autoria de Gabriel Boz

Gabriel Boz, natural do Brasil, tem-se distinguido por entre o fandom brasileiro pela sua actividade de escritor e divulgador de ficção científica. Participa, juntamente com outras colegas, na revista electrónica Desfolhar, onde assina uma coluna dedicada a literatura fantástica. A revista aceita submissões de contos e poesia e estão abertos a participações portuguesas.

Cocôboros

Ao visitar o Museu de História Natural, deparou-se com as fezes fossilizadas de um dinossauro. Decidiu que não gostava de museus. Só mostravam porcarias sem vida. Resolveu construir uma máquina no tempo. Ao visitar o Jurássico, acabou devorado por um Tiranossauro Rex. Hoje, está exposto no Museu de História Natural.


Menções Honrosas

Tiago Gama tem-se destacado pela sua actividade de editor, juntamente com Telmo Pinto, do fanzine Phantastes. O Tiago recentemente anunciou o lançamento do 2º número do fanzine que inclui participações de Deborah Valentine, Alberto Figueiredo, Telmo Marçal, João Ventura e Gavin Sodo, entre outros.

Que Vergonha

De repente, o edifício começou a abanar fortemente; daí até se encontrar soterrada pelos escombros não decorreu muito, esperando por ajuda que não chegaria. A sul, novo choque para a comunidade internacional: “ovelha escapa milagrosamente a rocket terrorista!”. Que bom ter cobertura internacional para mostrar o verdadeiro horror da guerra.


João Ventura é já um nome conhecido na ficção especulativa portuguesa. Autor de numerosos contos e mini-contos, recentemente internacionalizou-se com a publicação de um conto na Universe Pathways, a edição inglesa de uma magazine grega especializada em ficção científica, fantasia e horror. Os interessados em continuarem a desfrutar do trabalho de João Ventura, podem continuar a fazê-lo através do seu blogue.

Recebeu nada menos do que 3 menções honrosas.

Reflexão sobre a carestia da escrita

Precisava de umas palavras para acabar o conto. Fui ao mercado. O governo devia ter mão nisto! Tudo caríssimo! Substantivos, adjectivos… um roubo! E os verbos? Passados, presentes, vá lá, mas os futuros!!!
“Sabe, os futuros andam muito incertos”, justificou-se, profissional, o vendedor. “Embrulho?”
“Não, obrigado, é para escrever já.”

História trágico-cósmico-fronteiriça

Quando chegou ao fim do universo, o astronauta rejubilou: afinal era finito! Mas a natureza tem horror ao vazio; encostado ao universo havia outro. E o pessoal do SEF exigiu-lhe visto para entrar. Regressou, humilhado, e fez-se funcionário público. Carimbava os vistos aos turistas que queriam visitar o universo vizinho…

Entre a insustentável leveza e o irremediável peso das palavras, a
frustração do escritor perfeccionista

Escreveu com palavras leves. O conto escapou-lhe das mãos e subiu rapidamente no ar até se perder de vista. Recomeçou, usando palavras pesadas. O conto escorregou da folha de papel e afundou-se, irremediavelmente perdido. Quando, persistente, acabou o terceiro, com palavras de densidade apropriada, já o prazo tinha sido ultrapassado.

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A transformação de Martin Lake & outras histórias

A Livros de Areia Editores de Viana do Castelo prepara-se para apresentar ao público português a obra de Jeff VanderMeer, um dos mais prometedores talentos do novo fantástico anglófono, já várias vezes comparado ao génio de Jorge Luis Borges e de Italo Calvino. À semelhança do que aconteceu com Rhys Hughes em 2005, a Livros de Areia preparou A transformação de Martin Lake & outras histórias, numa edição autografada e limitada a 200 exemplares, de modo a despertar a atenção dos leitores para publicações futuras deste escritor.

O volume, com tradução e selecção da responsabilidade de Luís Rodrigues, inclui as noveletas “A transformação de Martin Lake” (texto galardoado com um World Fantasy Award em 2000), “Vida secreta” e “Três dias numa cidade fronteiriça” (que valeu ao autor uma nomeação para a antologia generalista Best American Short Stories), para além de uma introdução do crítico Allen B. Ruch apontando as influências de Jorge Luis Borges na obra de VanderMeer.

Jeff VanderMeer estará em Portugal para apresentar A transformação de Martin Lake & outras histórias e exibir a curta-metragem Shriek, com realização de JT Lindroos e banda sonora do grupo australiano The Church, a partir do seu mais recente romance, Shriek: An Afterword. A sessão de apresentação e autógrafos terá lugar dia 24 de Julho (2.ª feira) na Fnac Colombo pelas 21h30.

Por cortesia do autor, temos o prazer de reproduzir no nosso site um excerto de “Vida secreta”, cuja acção decorre num bloco de escritórios onde se confrontam os sonhos e obsessões dos indivíduos que aí trabalham, ao mesmo tempo que a monotonia do quotidiano é interrompida pelo surgimento de um intruso muito especial.

Vida secreta
Jeff VanderMeer

A caneta

Como terá ido ali parar, interrogou-se ele, enquanto a observava. A caneta na mão direita do responsável tinha estado, há não mais de uma hora, na sua secretária. Com aquela caneta—extinta, que já não se fabricava, com recargas importadas do estrangeiro—tinha assinado documentos importantes, escrito condolências, redigido memorandos. A caneta era um exoesqueleto negro de obsidiana, com um corpo fino e lustroso. Trazia estranhos símbolos gravados na superfície. A ponta deslizava sem esforço pela folha, como os seus dedos quando massajava as costas da mulher.

(mais…)

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Eis que, mais uma vez, a secção Ficções recebe uma contribuição de um dos autores mais prolíficos da nova ficção especulativa portuguesa, João Ventura. O autor brinda-nos com um conto – A Política Educacional Comum – onde a sua já habitual ironia marca presença, oferecendo-nos a solução perfeita para sanar todos os males do sistema educativo português…

Ora leiam e divirtam-se.

A Política Educacional Comum

por

João Ventura

Encontrei o Francisco Vasconcelos (ou Vasconcellos, como ele nunca se esquecia de lembrar: com dois éles) na tomada de posse do reitor. Fomos colegas de curso, mas já não estava com ele há vários anos, embora fosse acompanhando a sua trajectória pelos jornais. Foi efusivo como sempre. Ele era uma daquelas pessoas que quando falam connosco insistem em nos segurar no braço, como se tivessem receio que, às primeiras palavras, o seu interlocutor tente imediatamente pirar-se…


Enquanto falávamos – coisa fácil para mim, que só precisava de ir pontuando com monossílabos o seu fluxo discursivo quase ininterrupto – eu ia rememorando a sua carreira: licenciatura em física, bolsa de estudo, doutoramento em Cambridge em física teórica com uma tese sobre um tema esotérico de que já não me lembro e aposto que ele também não, regresso ao país, mesmo a tempo de ser promovido a professor associado à custa da entrada em vigor do novo Estatuto da Carreira Docente Universitária. Nessa altura fez uma inflexão no seu percurso académico: passou do departamento de física para o de ciências humanas e sociais (a leccionar “História das ideias científicas” ou qualquer coisa assim…) em pouco tempo fez a agregação e ainda em menos tempo era catedrático!
Chegado ao topo da carreira, deve ter decidido que o seu ideal de vida não era ensinar adolescentes cada vez mais imaturos e partiu para outra: chefe de gabinete de um secretário de estado, depois de um ministro, membro de várias comissões, não estando na política mas nunca verdadeiramente fora dela, conseguiu ir desempenhando um conjunto de actividades que o foram mantendo afastado das maçadas que polvilham a vida de um professor universitário.

— E agora andas metido em quê? – consegui perguntar, enquanto ele fazia uma pausa para acenar a alguém conhecido.
— Estou no comité para a formulação da PEC.
— Formulação de quê?
Olhou-me com um ar condescendente.
— Nunca ouviste falar da PAC, política agrícola comum? Pois em face do sucesso da PAC, a Comissão decidiu formular a PEC – Política Educacional Comum – que depois de ir ao Conselho de Ministros da Educação, será apresentada ao Parlamento Europeu. Foi nomeado um comité com um representante de cada estado membro e eu sou o representante português nesse comité. Voilá!
— E o trabalho vai bem?
— Melhor seria impossível, em grande parte devido aqui ao teu amigo!
— A modéstia sempre foi uma das tuas qualidades – afirmei eu, muito sério.
Ele olhou para mim, e a resposta ficou suspensa enquanto apertou a mão a dois homens de fato escuro e gravata às riscas, tão parecidos um com o outro que cheguei a pensar se não seriam gémeos (mas também estes directores-gerais, assessores e funcionários superiores a mim parecem-me todos iguais!), acenou a um casal que se encontrava um pouco mais longe (ele devia conhecer pelo menos 90 por cento dos presentes na tomada de posse…) e começou a explicar-me:
— Sabes que esta coisa dos comités em Bruxelas é uma seca. Sempre para lá e para cá, em aviões a abarrotar, um horror! Mas tinha sido nomeado e não podia dizer que não a quem tinha indicado o meu nome, percebes? (Aqui, uma piscadela de olho cúmplice). Por outro lado, isto da política educacional já não me diz grande coisa… Claro, dá jeito ser apresentado como “O Professor Francisco Vasconcellos”, mas fora isso…
Já tinha falado o ministro, já tinha falado o empossado, a cerimónia tinha terminado e a multidão começava agora a formar uma fila para cumprimentar o novo reitor. E o Francisco prosseguia:
— Safei-me da presidência do comité, porque havia um inglês muito ansioso por ficar com esse cargo e a mim não me interessava nada: isso acarretava umas tarefas extra, como sejam reuniões periódicas com o comissário da “Educação e Formação” para o pôr ao corrente do avanço dos trabalhos. Depois da primeira reunião, e enquanto esperava no aeroporto de Bruxelas o voo de regresso a Lisboa, comecei a pensar o que poderia eu fazer para acelerar os trabalhos daquele comité. E de repente, não sei se foi do gin-tonic que estava a beber, se do conforto das poltronas da sala VIP, surgiu-me uma ideia miraculosa: pegar na PAC e transcrevê-la para a PEC!
— Transcrevê-la?
— Nunca pensaste nas semelhanças entre a agricultura e o ensino? Duas actividades com um ciclo anual: selecção das sementes no início, em Setembro/Outubro a sementeira, ao longo do ano toda uma série de operações, mondar e discutir trabalhos, pulverizar insecticida e dar testes, assistir ao crescimento e estar atento às condições adversas, e no Verão a colheita, e dois meses depois estamos de volta ao início do ciclo.
Era uma teoria no mínimo curiosa, mas ele não me deu tempo para objectar e continuou:
— Dadas estas semelhanças, a ideia que tive foi pegar nas medidas aprovadas na PAC e adaptá-las ao ambiente educativo. Desta maneira já tínhamos o formato preparado e não precisávamos de estar a inventar a roda!
— Não estou a perceber…
— É natural, na universidade vocês não funcionam desta maneira, são demasiado analíticos… Isto é raciocínio por analogia. Vou dar-te um exemplo.
A fila movia-se lentamente ao encontro do novo reitor, pelo que tínhamos tempo suficiente para prosseguir a sessão de esclarecimento.
— Já ouviste falar do cultivo dos girassóis?
Perante o meu ar de estranheza, prosseguiu:
— Como a agricultura portuguesa não é competitiva, e para evitar os problemas sociais de pôr os agricultores sem nada que fazer, a CEE, agora UE, pô-los a cultivar girassóis. Mas o mais curioso é que, para receber o subsídio, só precisavam de levar os girassóis à floração. Que de resto era verificada, de forma muito high tech, por fotografia aérea, não me lembro se por satélite ou a partir de aeronaves. A partir da floração, o que fizessem com os girassóis era perfeitamente irrelevante. Podiam fabricar óleo, dá-los a comer às vacas ou simplesmente queimá-los. O que era preciso, embora nunca explicitado, era pô-los a cultivar qualquer coisa que não competisse com a agricultura francesa ou alemã.
Mais uma pausa, enquanto ele se despedia de mais alguém conhecido que já tinha cumprimentado o empossado e se retirava.
— Isto era a PAC. Como se vai passar com a PEC? Muito simples. As engenharias, as economias, são ensinadas com muito mais eficiência em França, na Alemanha, em Inglaterra… Então vamos subsidiar as universidades que encerrem esse tipo de cursos. Por outro lado, vamos também financiar as instituições que criem cursos do tipo “antropologia do desenvolvimento”, “sociologia da comunicação inter-institucional”, “psicologia da arte totémica”, coisas desse género, quer tenham ou não mercado. O ter mercado não é razão para não subsidiar um curso, importa é que não interfira com cursos existentes nos países que pagam a factura, if you know what I mean… Por exemplo, uma licenciatura em gestão de SADs até seria muito interessante em Portugal, devido à importância do futebol na nossa vida social, cultural e económico-financeira. Com cadeiras como “Futebolês”, “Futebol e autarcas”, “Relações com o fisco”,… Mas isto são pormenores técnicos. Poderia continuar-se com um mestrado e mesmo com doutoramentos nesta área…
O meu interlocutor estava agora verdadeiramente empolgado:
— Outro exemplo: o set aside. Na PAC, trata-se de pagar aos agricultores para deixarem parcelas de terreno abandonadas, sem ser cultivadas. Na PEC, podemos fazer o mesmo a alguns edifícios escolares; deixamo-los abandonados, e à medida que as ervas daninhas, os ratos, etc., os forem invadindo, farão parte de uma espécie de regresso à natureza… E nem é de excluir a possibilidade de aparecer, dentro de alguns anos, um outro programa comunitário para a recuperação de edifícios escolares degradados…
Tínhamos chegado junto do reitor. Apresentámos os cumprimentos de circunstância e saímos depois juntos do edifício da reitoria. Aí ele olhou para o relógio e disparou:
— Tenho um compromisso para o qual já estou atrasado. Temos que nos encontrar um dia destes para beber um copo…

Despedimo-nos. Fiquei a vê-lo afastar-se e na minha cabeça comecei imediatamente a passar em revista os meus colegas do departamento, com quem possa partilhar estas informações. Precisamos organizar uma task force, fazer o trabalho de casa, para estarmos preparados quando esta história da PEC nos cair em cima. Quem tiver feito isso atempadamente, está na linha da frente; e isso é o que importa quando começarem a chegar os euros de Bruxelas…
Ao fundo da rua, o meu antigo colega fazia sinal a um táxi e eu dei comigo a pensar: este Vasconcellos é um génio!

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Eternidade

E a estrear a secção Ficções da Épica, eis que João Ventura nos oferece um conto onde propõe uma interessante invocação de um passado medieval que acompanha os primeiros passados dados na Imprensa por Gutenberg. Mas por trás do fascinante ambiente dos primeiros livros e bibliotecas, escondem-se obscuras tentativas de libertar a Humanidade da morte

Pode ler o conto, acedendo ao link.

ETERNIDADE

por

João Ventura

A porta é sólida. O revestimento, em talha finamente trabalhada, foi recuperado de uma abadia medieval, bombardeada durante a 2ª guerra mundial e quase totalmente destruída. Por debaixo da madeira polida pela passagem dos séculos é uma porta corta-fogo. Para mim não tem importância, mas é bom saber que os livros estão protegidos. A sala tem acesso reservado e por cima da porta está escrito: IDADE MÉDIA EUROPEIA.

A sala é grande. Prateleiras com livros até ao tecto formam corredores estreitos. A espaços, pequenas mesas de trabalho, providas do necessário: luz, terminal com gravador áudio e vídeo, scanner… Reina o silêncio, apenas perturbado pelo zumbido dos sistemas de climatização. Ao longo dos corredores, no tecto, o piscar vermelho ritmado dos detectores de incêndio.

Num dos extremos da sala há um conjunto de prateleiras com o rótulo: OCULTISMO, e numa delas, precisamente a terceira, quase na extremidade direita, está o Livro. E junto dessa prateleira, estou eu. Vigilante. À espera.

Não é possível definir o que eu sou. Alguns poderiam considerar-me um espírito, se a velha dicotomia corpo-espírito não fosse tão tosca. Sou uma… Presença, algo tão real como qualquer das pessoas que se movimenta por estes corredores e salas, mas de detecção impossível mesmo pelos mais sofisticados sensores.

A biblioteca é enorme. Por vezes, durante a noite, quando posso interromper a minha vigilância (a sala encerra ao fim da tarde), percorro-a demoradamente. Sempre me fascinaram, as bibliotecas. E esta, a Biblioteca da Europa, é uma das maiores existentes actualmente, contendo milhões e milhões de livros nos seus enormes bancos de dados. Desde a lei aprovada pelo Parlamento Europeu em 2020, as árvores são consideradas demasiado preciosas para serem destruídas apenas para fornecer suporte para informação. Abater uma árvore sem autorização é crime, punido com prisão e multas pesadíssimas. Contrabando ou venda ilegal de madeira ou papel envolve igualmente severas penas.

Dos livros em papel, os mais antigos estão guardados em salas de acesso reservado; só os possuidores de um passe A1 podem manusear esses livros de produção artesanal, anteriores à difusão em massa do século vinte. Os utilizadores normais têm de contentar-se com a leitura de um facsímile num dos muitos monitores espalhados pela biblioteca.

Mas nem sempre foram assim, as bibliotecas.

Eu vi-as evoluir, desde as salas escuras onde frades medievais, à luz de velas, copiavam textos e pintavam iluminuras em pergaminho, repositórios de conhecimento numa época em que este era escasso. Vi-as queimadas por multidões fanáticas e pacientemente reconstruídas por estudiosos dedicados, observei (e participei) em diversas batalhas da eterna guerra entre a luz e as trevas, entre o conhecimento e a ignorância. Foi essa minha paixão pelo conhecimento que fez com que eu estivesse junto de Gutenberg antes de ele imprimir a famosa Bíblia; sim, porque houve um livro impresso antes da Bíblia, e é por causa desse Livro que eu estou aqui, à espera. Porque Eles decidiram que eu seria o Guarda do Livro.

—— x ——

Encontrei Johannes Gensfleisch, conhecido por Gutenberg, em Estrasburgo, corria o ano de 1435. Ele trabalhava então na lapidação de pedras preciosas, e eu era já um adepto, um iniciado na filosofia alquímica. Longas tardes passei na sua oficina observando o seu trabalho paciente de redução de uma gema às dimensões perfeitas, derivadas dos sólidos pitagóricos. Comprava-lhe pó de diamante, que utilizava nas minhas manipulações. Sendo o diamante a pedra perfeita, pensava eu que teria uma influência positiva na Grande Transmutação.

Dois anos mais tarde acabou com o negócio da lapidação e passou a interessar-se pelo fabrico de espelhos… Eu, pela minha parte, tinha começado a duvidar da validade dos métodos que utilizara até então. Aquecimentos, destilações e condensações, misturas e separações cada vez me apareciam mais como caminhos sem saída, e a simples visão dos fornos, retortas e alambiques colocava no meu espírito uma questão insidiosa: Para quê? E regressei à leitura das obras de Roger Bacon, do Corpus Hermeticum, das traduções dos originais árabes e gregos, agora numa perspectiva menos literal e mais simbólica, com a convicção cada vez mais forte de que esta leitura “subterrânea” era a mais adequada à compreensão dessas grandes obras, com o objectivo de atingir o verdadeiro conhecimento.

—— x ——

Há algumas semanas, um homem entrou na sala pela primeira vez. Nada de estranho, em princípio seria apenas mais um investigador… Mas em relação a este, senti imediatamente a inquietação, o fogo interior; muito diferente dos outros, onde apercebo a simples preocupação com a tese que andam a escrever ou com o artigo que estão a preparar. Olhou em volta, e dirigiu-se sem hesitação para a zona do Ocultismo. Mais um em busca do Caminho.

Tenho acompanhado o seu trabalho dia a dia. Lentamente, vai talhando um percurso no labirinto dos textos herméticos. Por duas ou três vezes já chegou a becos sem saída; não desiste, volta atrás à citação obscura, procura uma interpretação alternativa, começa numa nova direcção. Os Mestres deixam muitas vezes falsas pistas destinadas a testar os que procuram o Caminho, a separar o trigo do joio. São precisos conhecimento, discernimento e força de vontade para descobrir essas armadilhas e manter os passos na vereda que leva à Luz.

—— x ——

Lembra-me aquele que eu fui, há centenas de anos. Depois de firmemente convencido que a descrição das manipulações laboratoriais eram apenas uma cobertura que ocultava o verdadeiro texto iniciático, voltei a ler os Mestres com atenção redobrada. Razões familiares – outros diriam o Destino – fizeram com que me deslocasse para Mogúncia, onde passei a viver. Um pequeno pecúlio herdado dos meus pais permitia que pudesse dedicar todo o meu tempo ao estudo intenso das grandes obras alquímicas. E quase sem o saber, quando o meu espírito se tinha despojado de tudo o que não fosse a paixão pelo conhecimento, descobri o Caminho!

Uma alegria sem limites apoderou-se de mim. A libertação da morte era um objectivo tão transcendente que a minha ideia foi imediatamente divulgar o Caminho.

Coloquei mais lenha na lareira, acendi uma vela nova e sentado à minha mesa de trabalho, comecei a escrever a descrição dos procedimentos a executar por quem quisesse atingir a imortalidade. Quando terminei, a lareira estava apagada, a luz do dia começava a entrar pela janela e à minha frente tinha um molho de folhas com a descrição do Caminho. Atirei-me para cima da cama e dormi um sono esgotado mas tranquilo.

No dia seguinte saí de casa e passeei pelas ruas, sem destino. Um problema dançava na minha cabeça: como fazer chegar às pessoas o conhecimento do Caminho. Era dia de mercado, e atravessando a praça, passei junto da banca de um mercador de metais, que negociava com um cliente; para minha surpresa, o cliente era Gutenberg, que eu não via há vários anos. Saudámo-nos efusivamente e decidimos celebrar o nosso reencontro. E alguns minutos depois, estávamos sentados a uma mesa da Estalagem do Cavalo Branco, e o estalajadeiro colocava à nossa frente pão de centeio, queijo de ovelha, um jarro de cerveja e dois pichéis.

Soube então que Gutenberg tinha começado a trabalhar com um novo processo de impressão, compondo o texto com caracteres móveis fundidos em metal. A técnica tinha vindo do Oriente; ele não me disse como tinha chegado ao seu conhecimento, mas contou-me que tinha introduzido alguns aperfeiçoamentos. Da algibeira do gibão tirou um objecto embrulhado num lenço, que abriu com cuidado: era a Ars Minor, uma gramática da autoria de Aelius Donatus, livro de pequeno formato para uso dos estudantes de Latim, impressa com a nova técnica. Folheei-o com interesse: a qualidade de impressão era notável. E assim, a solução para o meu problema vinha ter comigo: com esta invenção poderia fazer centenas, milhares de cópias e desta forma, atingir mais rapidamente o meu objectivo – libertar a humanidade da morte! No fim do segundo jarro de cerveja, tinha persuadido Gutenberg a imprimir o meu livro.

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O novo estudioso continua a fazer progressos na sua pesquisa. Consigo sentir as suas fases de desânimo e de entusiasmo. É metódico, esforçado, e conhece, além do latim, o grego, o árabe e o hebraico, o que lhe permite ir directamente às fontes em vez de ter de confiar em traduções, muitas vezes incorrectas, que induzem o leitor em erro.

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O processo de impressão avançou bem. Gutenberg estava quase tão entusiasmado como eu próprio. Até que chegou o dia em que terminámos a encadernação de todos os exemplares da primeira edição. Era tarde, despedimo-nos e fui para casa, levando comigo o primeiro exemplar que tínhamos produzido.

Alta noite, fui acordado com fortes pancadas na porta da rua. Era um mensageiro da parte de Gutenberg – a oficina estava a arder. Corri para lá e deparei-me com uma visão infernal: todo o interior estava em chamas, que saíam pela janela e pela porta. Já os vizinhos se tinham organizado e formado uma fila, passando baldes de água desde o chafariz localizado ao fundo da rua. Mas parecia que, cada vez que a água caía sobre as chamas, estas redobravam de intensidade. No final, todos os esforços foram em vão. O incêndio foi extinto de madrugada, tendo consumido as pranchas, os livros, tudo. No meio da desolação calcinada do que tinha sido a oficina de impressão, o desespero era o meu sentimento dominante. Tão perto, e agora outra vez tão longe…

Gutenberg teve uma crise de arrependimento, considerou que O Caminho era um livro herético e que o incêndio havia sido um castigo divino. Como uma penitência auto imposta, começou a compor a Bíblia latina; quando a terminou, aceitava com gratidão encomendas da Igreja para imprimir indulgências, querendo assim redimir-se do pecado que – achava ele – tinha cometido.

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Quanto a mim, Eles, os responsáveis do incêndio, revelaram-se pouco tempo depois. Eram os Imortais, e tinham seguido a minha actividade desde as primeiras tentativas no domínio da alquimia. Viram-me descobrir o Caminho e atravessar a Passagem, dessa forma tornando-me imortal, igual a Eles; deixaram-me escrever o Livro e imprimi-lo. E então provocaram o incêndio, para destruir todos os exemplares, excepto o primeiro a ser encadernado que eu tinha levado para casa. Com o seu perverso sentido de humor, e como castigo por ter tentado divulgar o Segredo, condenaram-me a guardar o Livro per saecula saeculorum… ou até Eles quererem. Com a missão de eliminar todos os que o lerem!
Tentei recusar, mas os tormentos que me infligiram cedo me fizeram obedecer. Os Imortais podem ser muito persuasivos… Para quem é eterno, felicidade, sofrimento, horror, são conceitos muito relativos… Ainda hoje evito pensar naquilo por que passei nessa altura.

No princípio, sofria muito sempre que tinha de matar alguém. E não foram poucos; a procura da vida eterna nesses tempos era um assunto muito sério. A um forcei-o a saltar do alto da torre da igreja; a outro, fiz com que cortasse as veias com a sua própria adaga. Ainda outro, induzi-o a misturar veneno no vinho que ia tomar à refeição e a bebê-lo de um só trago. Depois fui-me habituando e fui também refinando os meus processos. Aprendi muito sobre o funcionamento do organismo humano; é um sistema tão vulnerável, com tantos pontos fracos…

Quando percorro a biblioteca, interessa-me especialmente a área científica. Acompanho tudo o que se faz em relação ao prolongamento da vida, apesar de a direcção ser errada. Bioquímica, biologia molecular, genética, tudo isso me lembra as minhas tentativas toscas com os métodos da alquimia. A solução está noutro nível, na manipulação do espaço-tempo. Porque a matéria não é mais do que o espaço infinitamente denso. No século XX houve alguém que vislumbrou o problema, mas quando se apercebeu das implicações, achou que a bomba nuclear era uma arma menos perigosa. Talvez tivesse razão…

Lentamente, com o passar dos séculos, fui desenvolvendo um critério em relação ao método a usar. Se é alguém generoso que procura o Caminho, se sinto que nele existe o amor pelo seu semelhante, sou rápido e eficiente: nem chega a sentir quando a vida o abandona. É como accionar um interruptor.

Mas quando sinto em algum deles a sede do Poder, é diferente… Como o que veio antes deste, já não sei há quantos anos! Sentia-se o mal à sua volta. Deixei-o progredir ao longo das estantes, senti a sua excitação aumentar, permiti que descobrisse o Livro, vi-o encher-se de triunfo ao ler a descrição do Caminho. Quando ele ia começar a tomar notas, bastou-me eliminar alguns neurónios numa região específica do cérebro e pronto – ficou imobilizado como num instantâneo fotográfico. Caiu ao chão. Eu sentia a agitação na sua mente, o desespero de quem descobriu o Caminho e não o pode percorrer!

Ficou no chão até ser encontrado mais tarde por um funcionário da biblioteca que passava numa inspecção de rotina. Este contactou imediatamente a emergência médica e depois de o pessoal da ambulância o ter levado, arrumou cuidadosamente tudo o que ele tinha estado a consultar. No hospital onde foi internado, sobreveio-lhe uma febre altíssima e morreu ao fim de uma semana. Tecnicamente esteve em coma, mas a autópsia não identificou a causa. Penso que deve ter enlouquecido quando se deu conta que os seus contactos com o mundo exterior estavam definitivamente cortados, e que acabaria por morrer literalmente à vista da Passagem.

Mas ultimamente tenho-me aborrecido muito. O interesse pela literatura hermética tem diminuído. Passam-se anos sem ver uma cara nova neste sector. E o tédio é um sentimento tão desagradável…

Lá vem de novo o que procura o Caminho. Já não deve demorar a chegar ao fim da sua busca. Tenho que decidir a forma como o vou eliminar. Enfim, alguma coisa para me ocupar, ao fim de tantos anos…


Para os interessados em submeter textos à Épica, poderão enviar as vossas contribuições para o mail epica@netvisao.pt .Aceitam-se outras formas literárias que não o conto, conquanto a temática se limite ao fantástico. Os contos não deverão exceder 3000 palavras.

Os melhores textos que forem surgindo ao longo do ano 2005 serão publicados em versão bilingue na Acta do II Encontro Português do Fantástico a realizar em Novembro deste ano.

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