Do mundo da Banda Desenhada, chega-nos através da Devir uma série arrojada de fantasia, construída pela dupla Kurt Busiek e Carlos Pacheco, uma equipa já com provas dadas na série Avengers Forever.
Uma nova colaboração entre o escritor e ilustrador teve como resultado 6 números da série Arrowsmith, nomeada para o prémio Eisner, e que foram publicados na forma de graphic novel com o título Arrowsmith: So Smart in Their Fine Uniforms, conhecido em português como A Guerra da Magia.
Kurt Busiek dá nova vida às histórias de luta e coragem durante a I Grande Guerra, ao criar a personagem de Fletcher Arrowsmith, um rapaz natural de Connecticut, filho de um ferreiro, que se deseja alistar como aviador e combater contra os inimigos prussianos. Embora esta premissa não constitua nada de novo em relação às histórias de guerra, está longe de se tornar a típica história do soldado que se alista e combate nas trincheiras.
Até porque no mundo bélico de Kurt Busiek, a tecnologia foi substituída pela magia. As metralhadoras, granadas, gases e todo o arsenal utilizado nas primeiras décadas do séc. XX foram substituídos por encantamentos e feitiços. Ao lado de Fletcher, combatem ogres, trolls, dragões, em combate mortal contra outras criaturas míticas aliadas aos prussianos, vampiros e lobisomens. Em vez de aviões, são homens que sobrevoam os céus, numa aliança invulgar entre homem e dragão ( um pouco a lembrar a série dos Dragões de Pern de Anne McCaffrey), lutando com espadas e encantamentos.
Embora possa parecer forçada essa introdução da magia na sociedade europeia dessa época, é com uma espantosa adaptação e respeito às convenções da época que Pacheco e Busiek desenvolvem a história de Arrowsmith. Num traço excelente, elegante, vivaz e preciso, Pacheco reconstrói com rigor a arquitectura das cidades europeias do Continente, o vestuário de época, os trajes militares, combinando-os com enorme facilidade a elementos fantásticos. Gárgulas a ganharem vida no topo dos monumentos de Paris, exércitos de zombies a ameaçarem os habitantes que passeiam pelas ruas, experiências na Academia de feitiçaria tornam-se lugar comum numa época em que não se podem olhar a meios para atingir os fins.
Instalado já o cenário em que se vão mover as personagens, dá-se início então à odisseia de Fletcher Arrowsmith, um jovem que se deixa deslumbrar inicialmente por todo o idealismo tóxico que envolve a guerra. Um grande admirador dos aviadores da Divisão Aérea Ultramarina, Fletcher alista-se na Divisão contra a vontade paterna e começa o seu treino de aviador. Um jovem ingénuo e sem nenhumas qualidades excepcionais, Fletcher está longe do arquétipo de super-herói que salva vidas em perigo. Não quer dizer que Arrowsmith não cumpra o seu dever, mas ele é acima de tudo um jovem como qualquer outro que se alistou na guerra pelas razões erradas.
A pouco e pouco, o idealismo do jovem sucumbe ao desencanto e desilusão, e face às mortes dos seus camaradas, cedo nasce o sentimento de culpa por estar vivo enquanto os amigos morrem à sua volta. Kurt Busiek nunca comete o erro de permitir que a magia invada a sua história e se torne numa questão maniqueísta de luta entre o bem e mal. O mundo da feitiçaria é relegado para segundo plano, face à vontade do argumentista em expor uma crítica social incisiva sobre os horrores da guerra e o seu efeito nos soldados. A série vai progredindo numa direcção cada vez mais negra e as cartas que Arrowsmith escreve são uma evidência da sua perturbação e horror pelas atrocidades a que é forçado a cometer.
O ponto culminante é atingido na destruição acidental da cidade de Holbruck, provocando um sem número de vítimas civis. A consciência de Fletcher é atormentada pela desumanidade a que assistiu e os demónios libertados pelos feiticeiros reflectem os seus próprios demónios interiores que o vão consumindo. Cabe então a Arrowsmith voltar a encontrar um sentido de vida que justifique a guerra que destruíra a sua inocência, talvez alcançando esse sentido, em parte, graças ao amor e a amizade.
Arrowsmith: a Guerra da Magia trata-se no fundo de uma parábola da Europa dilacerada por guerra e que, embora recorra a artifícios medievais impressionantes e bem pesquisados, deseja assumir-se como uma reflexão sobre os horrores de um mundo que parece auto-destruir-se mas, apesar de tudo, Fletcher nunca se deixa abater e cair no desespero e ainda mantém a sua crença num futuro luminoso em que a vida possa ser celebrada.
Um excelente álbum de fantasia, e que dá nova vida ao velho cliché do jovem soldado inocente que morre lentamente e que vive na sombra dos seus tormentos. Mas Fletcher Arrowsmith resiste e aguardamos as suas próximas aventuras com grande expectativa.
Argumento: Kurt Busiek
Desenhos: Carlos Pacheco
Devir, Álbum US, 160 págs, cor PVP: 16€
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