Em anos recentes, o fantástico literário português tem vindo a assimilar, na sua maioria, muitos dos padrões anglo-saxónicos que regem e influenciam, sem contestação, o género.
Todavia, a literatura de língua portuguesa tem dado mostras de vitalidade e frescura noutras áreas geográficas perfeitamente distintas em que a oferta literária tem vindo a reconstruir e questionar um passado cultural diverso e feito de múltiplos estratos, entre eles o da magia e encantamentos, de espíritos e lendas de curandeiros. A escritora moçambicana, Paulina Chiziane, nesse sentido, tem empreendido uma notável carreira de romancista, do qual se destaca o seu romance, O Sétimo Juramento, publicado no ano 2000, pela editora Caminho.
Discutir a história de Moçambique implica referir o seu passado e herança colonial, e implica, de certa forma, procurar entender as convulsões que atravessaram todo a sua história de contrastes e contradições.
Paulina Chiziane, em O Sétimo Juramento, suspende o cenário da guerra civil, abordado em livros anteriores, e procura, antes de mais, problematizar a cultura popular moçambicana, o conhecimento antigo e religioso em oposição à nova cultura urbana, fruto do passado colonial. Oferece o retrato de um espaço onde se ergue dos escombros a burguesia e ascende um novo poder capitalista, sem escrúpulos para com as classes desfavorecidas.
Numa linguagem poética e fluída, trabalhada e consciente, a autora descreve a vida de uma família da classe média/alta que se enquadra, aparentemente, nos cânones tradicionais; David e Vera, um casal abastado, dois filhos, símbolo de uma vida normal, afastada da pobreza e desiguldades, igualmente afastada da tradição moçambicana, presente apenas nas memórias de uma avó.
Desde o princípio que é admitida a corrupção de David, dirigente de uma fábrica e a braços com uma revolta e protestos dos operários por melhores condições. Perante o desmoronar do seu mundo de conforto e prosperidade, David envereda por um caminho obscuro que o conduz ao reavivar das suas raizes culturais, ao desbravar de séculos de tradição onde impera a sabedoria religiosa animista, onde todas as coisas são dotadas de vida. Sabedoria que invoca os espíritos vigilantes, lançando as almas humanas ao abismo.
Abismo que, efectivamente, rodeia constantemente os passos de David, levando-o a ceder à magia negra. Se por um lado encontramos a prática religiosa católica, consequência da colonização portuguesa, por outro, nunca deixaram de estar presentes antigas práticas religiosas, que sucessivos governos do país tentaram proibir e apagar da memória.
Ainda que o percurso espiritual de David conduza os seus passos da luz para a escuridão – A magia negra é o único caminho que me resta – a sua família revolta-se contra a sua entrega ao mal e ao mundo das trevas.
Vera, sua mulher, e Clemente, seu filho, assistem impotentes ao ruir das convenções, da tradição e moral, do espírito do pai de família, cada vez mais atormentado e enlouquecido pelo seu poder visceral e primitivo, herança da noite primordial africana.
De facto, para uma melhor compreensão do romance de Chiziane torna-se vital compreender a própria cultura africana e a forma como os curandeiros e feiticeiros ocupam um lugar de destaque na sociedade. Tanto o curandeiro ou Wulumo, Sumam, Nyamussoro, diferentes nomes que assume consoante os grupos étnicos, representa o bem, a luz, o mundo da estabilidade, em oposição ao Feiticeiro, ou Kuino, Tyarkaw, Bayifo, que opera sobretudo de noite e manifesta-se muitas vezes através de metamorfoses, sendo comum a prática de possessão de espíritos. Como em inúmeras das obras de fantasia, também aqui não poderia deixar de estar presente a luta titânica entre o bem e o mal; bem personificado na figura de Clemente,filho de David, dotado de poderes de curandeiro.
Face ao quebrar de todos os laços familiares e do mundo que conhecera, resta apenas à figura feminina do romance, Vera, sobreviver e preservar a sanidade a todo o custo, ainda assim, a sua própria fragilidade de mulher acaba por inspirar força e um sopro de esperança por toda a história.
Muito mais do que uma luta entre bem e mal, as páginas de O Sétimo Juramento descrevem-nos o antagonismo entre pai e filho, entre uma tradição ancestral e a da modernidade construída com os novos costumes herdados dos colonizadores. Com a diferença de que Clemente não procura rejeitar a tradição, antes restaurá-la do seu passado obscuro e conferir-lhe a dignidade que merece. Ser Nyamussoro com orgulho e dignidade, em comunhão com o mundo moderno.
O fantástico aqui, mais do que assumir uma face de entretenimento ou mito, é assumido como tradição de um povo. Desta forma, Chizane consegue a proeza notável de reflectir, em cada página, a alma contraditória e marcada por contrastes de Moçambique.
No imaginário do povo moçambicano continuam presentes todas as velhas lendas e histórias, espólio de cada grupo étnico que, com a passagem do tempo, acabaram por estabelecer as raizes do fantástico da África Negra.