Eis que, mais uma vez, a secção Ficções recebe uma contribuição de um dos autores mais prolíficos da nova ficção especulativa portuguesa, João Ventura. O autor brinda-nos com um conto – A Política Educacional Comum – onde a sua já habitual ironia marca presença, oferecendo-nos a solução perfeita para sanar todos os males do sistema educativo português…
Ora leiam e divirtam-se.
A Política Educacional Comum
por
João Ventura
Encontrei o Francisco Vasconcelos (ou Vasconcellos, como ele nunca se esquecia de lembrar: com dois éles) na tomada de posse do reitor. Fomos colegas de curso, mas já não estava com ele há vários anos, embora fosse acompanhando a sua trajectória pelos jornais. Foi efusivo como sempre. Ele era uma daquelas pessoas que quando falam connosco insistem em nos segurar no braço, como se tivessem receio que, às primeiras palavras, o seu interlocutor tente imediatamente pirar-se…
Enquanto falávamos – coisa fácil para mim, que só precisava de ir pontuando com monossílabos o seu fluxo discursivo quase ininterrupto – eu ia rememorando a sua carreira: licenciatura em física, bolsa de estudo, doutoramento em Cambridge em física teórica com uma tese sobre um tema esotérico de que já não me lembro e aposto que ele também não, regresso ao país, mesmo a tempo de ser promovido a professor associado à custa da entrada em vigor do novo Estatuto da Carreira Docente Universitária. Nessa altura fez uma inflexão no seu percurso académico: passou do departamento de física para o de ciências humanas e sociais (a leccionar “História das ideias científicas” ou qualquer coisa assim…) em pouco tempo fez a agregação e ainda em menos tempo era catedrático!
Chegado ao topo da carreira, deve ter decidido que o seu ideal de vida não era ensinar adolescentes cada vez mais imaturos e partiu para outra: chefe de gabinete de um secretário de estado, depois de um ministro, membro de várias comissões, não estando na política mas nunca verdadeiramente fora dela, conseguiu ir desempenhando um conjunto de actividades que o foram mantendo afastado das maçadas que polvilham a vida de um professor universitário.
— E agora andas metido em quê? – consegui perguntar, enquanto ele fazia uma pausa para acenar a alguém conhecido.
— Estou no comité para a formulação da PEC.
— Formulação de quê?
Olhou-me com um ar condescendente.
— Nunca ouviste falar da PAC, política agrícola comum? Pois em face do sucesso da PAC, a Comissão decidiu formular a PEC – Política Educacional Comum – que depois de ir ao Conselho de Ministros da Educação, será apresentada ao Parlamento Europeu. Foi nomeado um comité com um representante de cada estado membro e eu sou o representante português nesse comité. Voilá!
— E o trabalho vai bem?
— Melhor seria impossível, em grande parte devido aqui ao teu amigo!
— A modéstia sempre foi uma das tuas qualidades – afirmei eu, muito sério.
Ele olhou para mim, e a resposta ficou suspensa enquanto apertou a mão a dois homens de fato escuro e gravata às riscas, tão parecidos um com o outro que cheguei a pensar se não seriam gémeos (mas também estes directores-gerais, assessores e funcionários superiores a mim parecem-me todos iguais!), acenou a um casal que se encontrava um pouco mais longe (ele devia conhecer pelo menos 90 por cento dos presentes na tomada de posse…) e começou a explicar-me:
— Sabes que esta coisa dos comités em Bruxelas é uma seca. Sempre para lá e para cá, em aviões a abarrotar, um horror! Mas tinha sido nomeado e não podia dizer que não a quem tinha indicado o meu nome, percebes? (Aqui, uma piscadela de olho cúmplice). Por outro lado, isto da política educacional já não me diz grande coisa… Claro, dá jeito ser apresentado como “O Professor Francisco Vasconcellos”, mas fora isso…
Já tinha falado o ministro, já tinha falado o empossado, a cerimónia tinha terminado e a multidão começava agora a formar uma fila para cumprimentar o novo reitor. E o Francisco prosseguia:
— Safei-me da presidência do comité, porque havia um inglês muito ansioso por ficar com esse cargo e a mim não me interessava nada: isso acarretava umas tarefas extra, como sejam reuniões periódicas com o comissário da “Educação e Formação” para o pôr ao corrente do avanço dos trabalhos. Depois da primeira reunião, e enquanto esperava no aeroporto de Bruxelas o voo de regresso a Lisboa, comecei a pensar o que poderia eu fazer para acelerar os trabalhos daquele comité. E de repente, não sei se foi do gin-tonic que estava a beber, se do conforto das poltronas da sala VIP, surgiu-me uma ideia miraculosa: pegar na PAC e transcrevê-la para a PEC!
— Transcrevê-la?
— Nunca pensaste nas semelhanças entre a agricultura e o ensino? Duas actividades com um ciclo anual: selecção das sementes no início, em Setembro/Outubro a sementeira, ao longo do ano toda uma série de operações, mondar e discutir trabalhos, pulverizar insecticida e dar testes, assistir ao crescimento e estar atento às condições adversas, e no Verão a colheita, e dois meses depois estamos de volta ao início do ciclo.
Era uma teoria no mínimo curiosa, mas ele não me deu tempo para objectar e continuou:
— Dadas estas semelhanças, a ideia que tive foi pegar nas medidas aprovadas na PAC e adaptá-las ao ambiente educativo. Desta maneira já tínhamos o formato preparado e não precisávamos de estar a inventar a roda!
— Não estou a perceber…
— É natural, na universidade vocês não funcionam desta maneira, são demasiado analíticos… Isto é raciocínio por analogia. Vou dar-te um exemplo.
A fila movia-se lentamente ao encontro do novo reitor, pelo que tínhamos tempo suficiente para prosseguir a sessão de esclarecimento.
— Já ouviste falar do cultivo dos girassóis?
Perante o meu ar de estranheza, prosseguiu:
— Como a agricultura portuguesa não é competitiva, e para evitar os problemas sociais de pôr os agricultores sem nada que fazer, a CEE, agora UE, pô-los a cultivar girassóis. Mas o mais curioso é que, para receber o subsídio, só precisavam de levar os girassóis à floração. Que de resto era verificada, de forma muito high tech, por fotografia aérea, não me lembro se por satélite ou a partir de aeronaves. A partir da floração, o que fizessem com os girassóis era perfeitamente irrelevante. Podiam fabricar óleo, dá-los a comer às vacas ou simplesmente queimá-los. O que era preciso, embora nunca explicitado, era pô-los a cultivar qualquer coisa que não competisse com a agricultura francesa ou alemã.
Mais uma pausa, enquanto ele se despedia de mais alguém conhecido que já tinha cumprimentado o empossado e se retirava.
— Isto era a PAC. Como se vai passar com a PEC? Muito simples. As engenharias, as economias, são ensinadas com muito mais eficiência em França, na Alemanha, em Inglaterra… Então vamos subsidiar as universidades que encerrem esse tipo de cursos. Por outro lado, vamos também financiar as instituições que criem cursos do tipo “antropologia do desenvolvimento”, “sociologia da comunicação inter-institucional”, “psicologia da arte totémica”, coisas desse género, quer tenham ou não mercado. O ter mercado não é razão para não subsidiar um curso, importa é que não interfira com cursos existentes nos países que pagam a factura, if you know what I mean… Por exemplo, uma licenciatura em gestão de SADs até seria muito interessante em Portugal, devido à importância do futebol na nossa vida social, cultural e económico-financeira. Com cadeiras como “Futebolês”, “Futebol e autarcas”, “Relações com o fisco”,… Mas isto são pormenores técnicos. Poderia continuar-se com um mestrado e mesmo com doutoramentos nesta área…
O meu interlocutor estava agora verdadeiramente empolgado:
— Outro exemplo: o set aside. Na PAC, trata-se de pagar aos agricultores para deixarem parcelas de terreno abandonadas, sem ser cultivadas. Na PEC, podemos fazer o mesmo a alguns edifícios escolares; deixamo-los abandonados, e à medida que as ervas daninhas, os ratos, etc., os forem invadindo, farão parte de uma espécie de regresso à natureza… E nem é de excluir a possibilidade de aparecer, dentro de alguns anos, um outro programa comunitário para a recuperação de edifícios escolares degradados…
Tínhamos chegado junto do reitor. Apresentámos os cumprimentos de circunstância e saímos depois juntos do edifício da reitoria. Aí ele olhou para o relógio e disparou:
— Tenho um compromisso para o qual já estou atrasado. Temos que nos encontrar um dia destes para beber um copo…
Despedimo-nos. Fiquei a vê-lo afastar-se e na minha cabeça comecei imediatamente a passar em revista os meus colegas do departamento, com quem possa partilhar estas informações. Precisamos organizar uma task force, fazer o trabalho de casa, para estarmos preparados quando esta história da PEC nos cair em cima. Quem tiver feito isso atempadamente, está na linha da frente; e isso é o que importa quando começarem a chegar os euros de Bruxelas…
Ao fundo da rua, o meu antigo colega fazia sinal a um táxi e eu dei comigo a pensar: este Vasconcellos é um génio!
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