O primeiro volume de uma saga de fantasia é sempre especial. Para além da óbvia função de introduzir pela primeira vez um leitor num universo com regras específicas e totalmente distanciadas do mundo real que conhecemos, é o livro que conserva um sentimento de nostalgia para o leitor interessado. Nostalgia pelo passado da história que estamos a ler, pois ela já avançou bastante no futuro. E nostalgia também por aquele prazer da descoberta aquando a primeira leitura. Claro que isto só é válido para os que se deixam seduzir pelo contador de histórias em questão.
Quer isto dizer que o primeiro volume é sempre aquele em que revemos as personagens e enredos numa posição ainda de inocência e descrença pelas circunstâncias em que subitamente se viram forçados a enfrentar. Todos os inícios são pautados pela inocência. E isto é ainda mais verdade em O Olho do Mundo de Robert Jordan.
Após 11 volumes, é difícil recordarmo-nos de como as personagens viveram antes de conhecerem a verdade sobre elas próprias, a verdade de que há mais coisas no céu e na terra para além dos limites da comunidade rural e que, subitamente, os elementos das trevas que eles julgam existir apenas em pesadelos ou histórias de velhas tontas, materializam-se bem no limiar das próprias casas.
Mas passemos à história em si. Existiu uma antiga guerra. Uma guerra tão fatal que quebrou o mundo e dispersou os povos em ruínas. A batalha deu-se entre as classes mais poderosas, os Aes Sedai. Homens e mulheres com a capacidade de manipular o poder cósmico que gira a Roda do Tempo. Se são suficientemente afortunados para nascer com esse talento inato, crescem e são treinados para se tornarem Aes Sedai.
Alguns juraram servir o campeão da Luz, encarnado em Lews Therin Telamon, o Dragão. Outros traíram os seus pares e aliaram-se a Shaitan, o Destruidor. O prólogo de O Olho do Mundo narra os finais acontecimentos dessa guerra e como Lews Therin Telamon sucumbiu à loucura causada pelas suas próprias mãos. Ao aprisionar Shaitan, o contra-ataque do Senhor da Escuridão manchou a parte masculina do poder da Roda do Tempo. E assim todos os homens Aes Sedai enlouqueceram e a destruição que causaram com a sua insanidade foi a que arrasou o mundo.
Este é o background mitológico essencial que dinamiza todo o enredo de A Roda do Tempo. A criatividade envolvida na construção deste corpus mitológico é um dos factores que deve servir de avaliação da qualidade de qualquer saga de fantasia, e posso dizer que o autor criou algo de singular e irrepetível, exclusivo apenas ao nome Robert Jordan.
O escritor descreveu os seus heróis masculinos como destruidores, temidos mais do que tudo pela Humanidade, e o modo como, três mil anos depois, ainda são temidos, afecta todo o enredo. Profecias indicam que Thelamon, o Dragão, irá reencarnar num novo paladino da Luz, mas ninguém deseja uma nova confrontação que irá trazer os ventos de Tarmon Gai’don, A Última Batalha.
No entanto, o destino começa a ditar as regras e, um dia, Moiraine Sedai chega a uma pequena vila onde descobre três jovens rapazes. A sua busca, que já durava há mais de vinte anos, chegara ao fim e sabia que um desses rapazes se iria tornar o homem mais temido e odiado do mundo, a reencarnação do Dragão. Era importante manipulá-lo e submetê-lo à vontade da classe feminina Aes Sedai.
É o encontro de Moiraine Sedai e Lan, o seu guarda, com Rand Al’Thor, Perrin Aybara, Matt Cauthon, juntamente com Nynaeve Al’Meara e Egwene Al’Vere que inicia a saga A Roda do Tempo e transporta-a muito para além da pequena vila, cruzando muitos reinos, muitos povos, muitos perigos, muitas verdades e traições, muitas mentiras e confrontações, muitas alianças e paixões.
Cada personagem pertence a uma terra com traços sociológicos e culturais distintos e a atenção aos detalhes enriquece a trama e dota-a de descrições aprofundadas e vívidas. Os mitos e a História fundem-se e todo o passado renasce de novo, tornando importante a tarefa de preservar esse legado histórico e mitológico. Nunca esquecerei quando descobri pela primeira vez a história de Lan, o companheiro de viagem de Moiraine, the Uncrowned King of Malkieri. Ou quando Moiraine revelou aos aldeões de Two Rivers o seu passado histórico, uma história de bravura e resistência quase inteiramente esquecida.
Rand é uma personagem ainda demasiado inocente neste livro, tentando escapar ao seu destino, recusando-se a aceitar a verdade. É um pobre camponês em cujas veias escorre o sangue de reis e guerreiros, mas ainda irá levar tempo até aceitar a inevitabilidade do seu destino.
Até lá, deixamo-nos levar pelas suas aventuras e a dos seus companheiros, liderados por Moiraine, a Aes Sedai sempre ambígua e nunca de total confiança. Matt Cauthon é o comic-relief da série, Perrin Aybara é um bom rapaz, mas atormentado por coisas que não consegue ainda compreender. Egwene e Nynaeve, a seu tempo, irão ascender em poder e influência, tornando-se peças vitais no tabuleiro.
Em O Olho do Mundo temos o primeiro vislumbre, mas ainda nos seus primórdios, da arquitectura épica que ainda está para vir e que atingirá a força total no 4º volume, A Sombra Alastra, esse sim, um épico em todas as palavras. Conheceremos ainda muitos povos e os seus costumes, e cada um terá uma importância que Rand não poderá ignorar.
Para quem gostaria de ficar a conhecer um pouco melhor da verdadeira fantasia épica, Robert Jordan é leitura obrigatória.
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