Remember, remember the 5th of November
Gunpowder, treason and plot;
I know of no reason, why the gunpowder treason
Should ever be forgot.
Esta rima popular inglesa relembra um momento em que uma figura histórica inglesa, Guy Fawkes, membro de um grupo de católicos conspiradores, falhou na sua tentativa de bombardear o Parlamento, em 1605, e assassinar o rei Jaime I. As verdadeiras razões que originaram a conspiração ainda hoje permanecem largamente desconhecidas, mas o que é certo é que Fawkes foi capturado e executado por traição. O que não impediu que ganhasse estatuto de culto e que ainda fosse relembrado, quatrocentos anos depois, numa celebração anual a 5 de Novembro.
É com a história, um tanto ou quanto romantizada, deste conspirador que abre o filme V de Vingança ( V for Vendetta) do realizador James McTeigue, mas admitamos, um realizador fantoche nas mãos do talento criativo dos irmãos Wachoswki, autores do guião. E os irmãos Wachowski, para quem viveu em Marte nos últimos seis anos, são os mentores do fenómeno Matrix.
O filme retrata a luta de um homem, Guy Fawkes ressuscitado, que oculta o rosto por detrás de uma máscara e assume-se como principal arquitecto de um plano que visa derrubar o governo fascista, detentor de absoluto poder numa Inglaterra futura e distópica. Auto-intitulado como V, torna-se a encarnação de um ideal de resistência e revolução que não hesita em recorrer a qualquer meio para fazer passar a sua mensagem e atingir os seus fins.
Na origem da personagem intrigante de V está o argumentista Alan Moore e o artista David Lloyd que deram à estampa pela primeira vez a odisseia deste homem de identidade desconhecida em 1982, na extinta magazine britânica Warrior. Seria o início de uma colaboração que culminou na colectânea de todas as séries impressas em formato graphic novel, sob os auspícios da DC Comics. As relações entre Alan Moore e a DC Comics são um assunto que faria correr muita tinta e discussão, e sobre o qual não me irei debruçar. A ruptura entre o argumentista e a companhia deveu-se a uma série de incompatibilidades que já vinham desde os anos 80 e atingiram a gota de água com o presente filme. Como consequência, a pedido de Alan Moore, o seu nome não é mencionado nos créditos. Para uma melhor compreensão dos problemas que deram origem a este facto lamentável, recomendo a leitura de uma entrevista recente de Alan Moore e que pode ser lida no seguinte site.
Alguma crítica cinematográfica portuguesa tem vindo a referir que esta decisão da parte do argumentista deveu-se essencialmente ao seu desagrado pela adaptação de V for Vendetta, quando na verdade era uma decisão inevitável, independentemente do filme ser uma obra-prima ou não. Aliás, havendo algum filme a culpar é, sem dúvida, a péssima adaptação de A Liga dos Cavalheiros Extraordinários.
V for Vendetta insere-se numa longa linha de literatura distópica que já se iniciara no séc. XIX, vindo a ganhar contornos bem definidos no séc. XX, com autores inovadores e que actualmente dispensam apresentações; Zamyatin, Huxley, Orwell. É de facto, num cenário tipicamente orwelliano, que se movem as personagens de Moore e Lloyd, e ao qual é prestada a devida homenagem através do actor John Hurt (que encarnou a personagem de Winston no filme 1984).
Nem sempre o traço de David Lloyd é preciso como deveria ser. Por vezes, não é fácil distinguir os rostos das personagens e a transição entre o enredo principal e as várias linhas secundárias da história, relacionadas com figuras de poder, também não o facilitam, mas, na verdade, a BD rompeu com os estereótipos de super-heróis e combatentes pela justiça, preocupando-se essencialmente em construir uma personagem que obriga o leitor a questionar os alicerces sociais e políticos, e a relação de quase demência estabelecida entre o indivíduo e o Estado que o governa, ou melhor, controla. Surgindo num contexto específico, o da governação Thatcher, Moore colocou em V as sementes do anarquismo, como ele deveria ser entendido na sua verdadeira definição, em contraponto a um estado totalitário que vigia, censura e silencia.
Mas para melhor compreender V, devemos olhá-lo à luz da sua relação com Evey Hammond, a rapariga que ele salva, numa noite, das garras da polícia. Uma relação estranha e ambígua muito melhor explorada na novela gráfica, ao passo que o filme limita-se a uma linearização que culmina no cliché do amor declarado na hora da morte. Banalidades destas aparte, dever-se-á considerar o filme à luz de outros momentos mais interessantes.
É sempre a relação entre V e Evey que constitui o centro vital e dinâmico da história, atingindo novas alturas na cena da tortura e interrogatório. V força Evey a descer ao abismo da sua alma, de forma a poder melhor compreender todo o medo e a prisão em que tinha sido enjaulada. E embora seja uma nova Evey , menos inocente e mais sabedora, a que se insurge, não deixa de confrontar V com a sua própria natureza monstruosa. Nem sempre apoia os seus actos, e muitas vezes condena-o pela sua natureza implacável e vingativa.
Não há uma definição fácil e estereotipada desta homem mascarado que tanto é considerado um terrorista, como um defensor da liberdade. Um produto monstruoso do próprio governo que pretende destruir, V torna-se essencialmente uma ideia, um símbolo político que repudia a ideia de controlo e censura e é o desencadeador do processo que visa cima de tudo anarquia, mas não caos. Anarchy means “without leaders”, not “without order”. This is not anarchy, Eve. This is chaos.
Perante uma tão forte mensagem política, os irmãos Wachowski mantém-se fiéis ao espírito das ideias da BD, embora estas sofram uma actualização para os nossos tempos. De facto, e nunca pensei vir a dizer isto, mas o enredo do filme chega a fortalecer alguns aspectos fracos da BD, em especial, a justificação que conduziu à ascensão do governo fascista no Reino Unido; a ideia de um ataque biológico orquestrado pelo próprio governo contra os seus cidadãos encaixa que nem uma luva na já complexa teia de acontecimentos. E pode-se afirmar que, embora as histórias secundárias tenham sido eliminadas a bem do ritmo narrativo, permanece fiel à BD, recriando momentos emblemáticos como a dança ao som da jukebox, a história da actriz Valérie, e até o desconcertante vestido de Evey no encontro com o bispo.
Uma outra personagem de destaque trata-se de Gordon (que só partilha com o Gordon da BD o nome) e no qual encontramos a problemática da censura nos media. Com a personalidade incontornável do actor britânico Stephen Fry, Gordon tornou-se o homem do espectáculo forçado a submeter-se às regras do Partido. Mas a sua admiração pela arte e cultura obrigam-no também, à semelhança de V, assumir uma máscara e ocultar a sua persona. Não sem que antes decida realizar a sua própria vingança contra o Chanceler Adam Sutler e elaborar uma sátira pela qual acabará por pagar um preço elevado.
As cenas finais são talvez as que produzem um maior aturdimento no público , em especial a cena do dominó, enquanto Finch está sentado na esquadra a relatar as últimas notícias de caos e violência que começam a germinar na sociedade, por intervenção de V. Mas para um filme interessado em passar uma mensagem claramente revolucionária, não teria sido sensato manter bem definidas as fronteiras entre caos e anarquia? Quem vê o filme não julgará que basta o caos para derrubar um regime fascista, o bombardeamento de uns edifícios simbólicos para se iniciar uma nova era de paz e fraternidade? É nessa direcção que se revelam as maiores falhas de V for Vendetta e o tornam um produto inferior à grande linha de cinema distópico. Existe uma revolução, mas não existe uma reflexão sobre as consequências dessa revolução, apenas uma visão naïve de que os fachos devem ser eliminados, de modo a permitir que a liberdade prevaleça.
A graphic novel poderia já não ser a subtileza em pessoa, mas havia uma abordagem mais honesta e menos maniqueísta à questão, colocada em termos demasiado lineares no filme. E no fim de tudo isto sobra um filme com uma realização de pouco brilho, com alguma cinematografia desinspirada (basta ver a cena de forte carga simbólica em que é rapada a cabeça a Natalie Portman, totalmente desperdiçada), mas um argumento que deixa o espectador com muito para pensar e tavez seja adequado o momento em que chega, um momento em que a conjuntura política actual não dá azo a grandes optimismos.
Na interpretação, a voz de Hugo Weaving é teatral o suficiente para dar corpo à máscara. Natalie Portman bem tenta, mas ainda lhe falta alguma maturidade para um papel deste género. Samantha Morton teria sido uma escolha bem mais adequada para Evey, mas faltará a esta actriz o grau certo de estrelato. De um elenco secundário competente, sobressai John Hurt com a sua eloquência dominada pelo fervor e exaltação nacionalistas.
Em termos artísticos é que, infelizmente, V fica uns quantos furos abaixo da fasquia.
E convenhamos, não acrescenta nada de novo ao que já tinha vindo a ser escrito e feito anteriormente, com muito maior brilhantismo. Mas será talvez a obra que tenha capturado, com maior impacto, uma mistura de bom entretenimento com assuntos que exigem uma maior consciência e reflexão da parte do público.
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