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Archive for the ‘Críticas’ Category

Early in the 21st Century, THE TYRRELL CORPORATION advanced Robot evolution into the NEXUS phase—a being virtually identical to a human—known as a Replicant.
The NEXUS 6
Replicants were superior in strength and agility, and at least equal in intelligence, to the genetic engineers who created them.
Replicants were used Off-world as slave labor, in the hazardous exploration and colonization of other planets.
After a bloody mutiny by a NEXUS 6 combat team in an Off-world colony,
Replicants were declared illegal on earth—under penalty of death.
Special police squads—BLADE RUNNER UNITS—had orders to shoot to kill, upon detection, any trespassing
Replicant. This was not called execution.
It was called retirement.

É com estas linhas que abre o filme Blade Runner – Perigo Iminente, um dos grandes clássicos do cinema de ficção científica de regresso às salas de cinema. Por ocasião dos 25 anos desde a sua data de estreia, é exibido o final cut, considerada a versão defintiva pelo seu realizador, Ridley Scott.

O filme teve um tremendo impacto em toda a produção cinematográfica do final do século, com os seus cenários distópicos futuristas, criando um futuro negro e verosímil, que desafia o espectador a reflectir sobre as grandes questões da Humanidade, sobre vida e imortalidade, sobre o inevitável avanço da tecnologia e a decrepitude da raça humana, sobre o papel divino de Homem e a sua incapacidade para lidar com a sua criação. Há muito a dizer sobre o filme, abrindo portas para um poço inesgotável de questões.

Baseado na obra de Phillip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep?, o filme estreou pela primeira vez em 1982, tendo então sido um fracasso de bilheteira. Sucessivas gerações de espectadores reconheceram-no como uma obra-prima e rapidamente tornou-se um filme de culto, sendo hoje considerado pelo público e crítica como um dos filmes pós-modernistas mais influentes do século XX.

A história envolve um Blade Runner de nome Rick Deckard (Harrison Ford) que é forçado a ir em perseguição de cinco replicantes foragidos em liberdade no planeta Terra. Como líder dos replicantes, Roy Batty (Rutger Hauer) sabe que em breve eles irão morrer, devido a um mecanismo de segurança que limitou a vida dos replicantes a apenas quatro anos. Desesperado para prolongar a vida e evitar a morte, confronta o seu próprio criador, a Tyrrell Corporation.

À medida que envelhecem, os replicantes gradualmente tornam-se cada vez mais humanos e anseiam por experiências emocionais. São anjos perfeitos caídos em desgraça e Roy lamenta o fim prematuro das coisas que viu e experienciou. A sociedade mostra nenhuma compaixão para com estas máquinas avançadas e, um por um, são abatidos.

Mesmo com a angústia que aparentemente habita o coração da história, o amor sobrevive e a luz que bate nos rostos das personagens é a luz de uma ténue esperança num mundo em que o Homem perdeu o controlo das suas acções e onde as máquinas se tornaram o nosso próprio Lúcifer incompreendido e marginalizado pelos céus inclementes.

As temáticas filosóficas e humanísticas presentes em Blade Runner , juntamente com os cenários urbanos distópicos e depressivos, e uma assombrosa banda sonora ao cuidado dos Vangelis, dotaram o filme de uma profundidade raramente vista num filme de ficção científica e tornou-o o exemplo máximo de excelência que ainda hoje não foi igualado, num tempo em que o cyberpunk e thrillers futuristas pós-apocalípticos abundam nas livrarias e salas de cinema.

Não percam a experiência única de ver Blade Runner num ecrã de cinema. Podem encontrá-lo em exibição nos salas de cinema Corte Ingles, em Lisboa.


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Desde a conclusão da trilogia O Senhor dos Anéis realizada por Peter Jackson, e considerando o avassalador fenómeno que se seguiu que permitiu ao género da literatura fantástica ganhar um protagonismo nunca antes visto, temos assistido a várias tentativas da parte dos grandes estúdios em repetir essa grande façanha que foi a trilogia.

Quase todos os anos desde 2003, temos tido direito a filmes de fantasia com elevados custos de produção, lançados especialmente na época natalícia. As Crónicas de Narnia, O Leão, a Bruxa e o Guarda-Fatos, baseado na obra de C. S. Lewis, tentou reproduzir o sucesso da trilogia de Tolkien, mas longe de atingir os resultados esperados.

Em 2006 começou uma nova tentativa de emular o sucesso tolkieniano, desta vez, recorrendo à célebre trilogia dos Mundos Paralelos (His Dark Materials) do britânico Phillip Pullman. Já anteriormente escrevi sobre os livros neste blogue, e confesso o meu fascínio e admiração pela imaginação e profundidade da obra de Pullman.

A campanha dispendiosa de marketing gerada em torno da adaptação do1º livro, The Golden Compass (Os Reinos do Norte), assim como a inclusão de nomes célebres como Nicole Kidman, Eva Green e Daniel Craig no elenco, originou expectativas quiçá demasiada elevadas.

Mas antes do julgamento, um breve resumo da história. Num mundo onde os humanos caminham lado a lado com as suas almas, os deamons, uma jovem rapariga de nome Lyra Belacqua está à guarda dos anciãos de Jordan College, em Oxford. Indomitável e rebelde à autoridade, Lyra toma conhecimento de estranhos eventos em torno de uma substância misteriosa, o Pó, através do seu tio, Lord Asriel.

Mas antes que Lyra inicie a sua demanda, Mrs. Coulter entra em cena e encarrega-se por um tempo da sua educação longe de Oxford. Mulher e criança entram em conflito e Lyra decide fugir. Em paralelo, as crianças de Oxford estão a ser raptadas por um grupo conhecido como Gobblers e Roger, o melhor amigo de Lyra, é raptado. Com a ajuda de ciganos e um instrumento de nome aletiómetro (a bússola dourada, voilá) ela decide partir em busca de Roger, começando uma aventura maior do que vida que irá afectar todos os mundos paralelos.

Posso dizer com grande segurança que A Bússola Dourada foi um dos maiores fracassos cinematográficos do ano 2007. E totalmente merecido.

Em primeiro lugar, deviam ter mudado o título para O Regresso do Rei Urso Polar. Teria feito mais sentido face ao protagonismo dado ao urso Iorek e a sua luta para recuperar o poder que lhe foi retirado por um urso vilão. Os ursos estão a lutar. Os ursos estão a pensar e a conspirar e a envenenar nas sombras, qual tragédia de Shakespere. Os ursos estão a lutar de novo. Esperem! ESPEREM! Um dos ursos morreu…!

Havia uma história relacionada com pó, mas não sei onde foi parar e as poucas referências que houve a pó estavam inteiramente fora de contexto e algumas até despropositadas.

A actriz escolhida para o papel de Lyra, Dakota Blue Richards, não conhece a diferença entre bravura e petulância. Lyra tem uma grande dose de arrogância que é temperada por coragem e sofrimento e é compreensivelmente difícil para uma adolescente encontrar a medida certa para interpretar a personagem de Lyra. Raramente simpatizei com Dakota Blue Richards e no lugar de Mrs. Coulter teria-lhe dado mais sopapos. Até a relação de Lyra com o aletiómetro não tem piada nenhuma.

Há coisas boas, claro. A recriação do mundo de Pullman é impecável graças aos efeitos especiais. Algumas cenas estão inteiramente fiéis ao livro, como todas as cenas em redor de Bolvangar. As cenas na casa isolada no meio do gelo onde Lyra encontra uma criança que tinha sido submetida à experiência Bolvangar não é má de todo. E antes que me acusem de esperar por um filme inteiramente fiel ao livro, digo em minha defesa de que tudo o que queria era um argumento bem escrito, consistente, fiel ao espírito da obra, mas encontrei exactamente o oposto.

Voltando ao filme. A personagem de Mrs. Coulter é muitas vezes incompreensível para quem não leu os livros, dada a reacções que só devia manifestar numa fase avançada da história. Tanto lhe dá espetar um estalo no macaco dourado, como deixar-se levar por sentimentalismos perante uma fotografia de Lyra. Algumas personagens interessantes foram sub-aproveitadas como Serafina Pekkala ou Lee Scoresby.

Daniel Craig como Lord Asriel tem muito que se lhe diga, extremamente fascinante, mas uma personagem incompleta, mutilada, precisamente porque decidiram tirar toda a cena final do livro. Só com a cena final, a personalidade e as ambições de Asriel tornam-se visíveis aos olhos de todos.

Com essa decisão, o clímax do filme dá-se com a libertação das crianças, salvas pelos nossos heróis intrépidos (e o urso…). O filme termina com a bruxa Serafina Pekkala a mencionar a profecia das bruxas e uma referência à guerra que virá. Guerra?! Que guerra, pensarão os espectadores se nem tiveram sequer referências suficientes neste filme para perceber o conflito que irá ter lugar no 3º volume, The Amber Spyglass? Como pode um espectador se emocionar ou empatizar com esta miserável adaptação quando está tudo retalhado, colado, mal interpretado, ou fora de contexto?

Mas é perfeitamente evidente que este filme foi criado, tendo em mente de que o público é estúpido e não é capaz de compreender coisas minimamente complexas. Estou farta de filmes de fantasia que escolhem tratar as suas audiências como desprovidas de qualquer massa cinzenta e que só percebem as coisas quando estão claramente delineadas entre o bem e o mal, entre o branco e o preto com muita acção à mistura.

Como eles irão apresentar o conflito que gera toda a narrativa da trilogia? Terão eles a coragem de retratar Deus como a figura cruel e decrépita que ele é no livro? E se não, de que vale continuar a adaptar estes filmes para o grande ecrã, se toda a sua essência é eliminada?

E porque escolher eliminar toda a recta final do livro, relegando-a para o 2º filme? Porquê escolher terminar o filme antes do grande momento final em que Asriel comete um acto de enorme crueldade e Lyra toma o primeiro passo em direcção a outros mundos paralelos para nunca mais voltar a ser a criança que era?

O melhor é ler os livros apenas, esquecer esta adaptação atroz e incompetente, concentrar-se em saborear a leitura das aventuras de Lyra. Alguns filmes simplesmente não valem o preço do bilhete.

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O primeiro volume de uma saga de fantasia é sempre especial. Para além da óbvia função de introduzir pela primeira vez um leitor num universo com regras específicas e totalmente distanciadas do mundo real que conhecemos, é o livro que conserva um sentimento de nostalgia para o leitor interessado. Nostalgia pelo passado da história que estamos a ler, pois ela já avançou bastante no futuro. E nostalgia também por aquele prazer da descoberta aquando a primeira leitura. Claro que isto só é válido para os que se deixam seduzir pelo contador de histórias em questão.

Quer isto dizer que o primeiro volume é sempre aquele em que revemos as personagens e enredos numa posição ainda de inocência e descrença pelas circunstâncias em que subitamente se viram forçados a enfrentar. Todos os inícios são pautados pela inocência. E isto é ainda mais verdade em O Olho do Mundo de Robert Jordan.

 

Após 11 volumes, é difícil recordarmo-nos de como as personagens viveram antes de conhecerem a verdade sobre elas próprias, a verdade de que há mais coisas no céu e na terra para além dos limites da comunidade rural e que, subitamente, os elementos das trevas que eles julgam existir apenas em pesadelos ou histórias de velhas tontas, materializam-se bem no limiar das próprias casas.

Mas passemos à história em si. Existiu uma antiga guerra. Uma guerra tão fatal que quebrou o mundo e dispersou os povos em ruínas. A batalha deu-se entre as classes mais poderosas, os Aes Sedai. Homens e mulheres com a capacidade de manipular o poder cósmico que gira a Roda do Tempo. Se são suficientemente afortunados para nascer com esse talento inato, crescem e são treinados para se tornarem Aes Sedai.

Alguns juraram servir o campeão da Luz, encarnado em Lews Therin Telamon, o Dragão. Outros traíram os seus pares e aliaram-se a Shaitan, o Destruidor. O prólogo de O Olho do Mundo narra os finais acontecimentos dessa guerra e como Lews Therin Telamon sucumbiu à loucura causada pelas suas próprias mãos. Ao aprisionar Shaitan, o contra-ataque do Senhor da Escuridão manchou a parte masculina do poder da Roda do Tempo. E assim todos os homens Aes Sedai enlouqueceram e a destruição que causaram com a sua insanidade foi a que arrasou o mundo.

Este é o background mitológico essencial que dinamiza todo o enredo de A Roda do Tempo. A criatividade envolvida na construção deste corpus mitológico é um dos factores que deve servir de avaliação da qualidade de qualquer saga de fantasia, e posso dizer que o autor criou algo de singular e irrepetível, exclusivo apenas ao nome Robert Jordan.

O escritor descreveu os seus heróis masculinos como destruidores, temidos mais do que tudo pela Humanidade, e o modo como, três mil anos depois, ainda são temidos, afecta todo o enredo. Profecias indicam que Thelamon, o Dragão, irá reencarnar num novo paladino da Luz, mas ninguém deseja uma nova confrontação que irá trazer os ventos de Tarmon Gai’don, A Última Batalha.

No entanto, o destino começa a ditar as regras e, um dia, Moiraine Sedai chega a uma pequena vila onde descobre três jovens rapazes. A sua busca, que já durava há mais de vinte anos, chegara ao fim e sabia que um desses rapazes se iria tornar o homem mais temido e odiado do mundo, a reencarnação do Dragão. Era importante manipulá-lo e submetê-lo à vontade da classe feminina Aes Sedai.

É o encontro de Moiraine Sedai e Lan, o seu guarda, com Rand Al’Thor, Perrin Aybara, Matt Cauthon, juntamente com Nynaeve Al’Meara e Egwene Al’Vere que inicia a saga A Roda do Tempo e transporta-a muito para além da pequena vila, cruzando muitos reinos, muitos povos, muitos perigos, muitas verdades e traições, muitas mentiras e confrontações, muitas alianças e paixões.

Cada personagem pertence a uma terra com traços sociológicos e culturais distintos e a atenção aos detalhes enriquece a trama e dota-a de descrições aprofundadas e vívidas. Os mitos e a História fundem-se e todo o passado renasce de novo, tornando importante a tarefa de preservar esse legado histórico e mitológico. Nunca esquecerei quando descobri pela primeira vez a história de Lan, o companheiro de viagem de Moiraine, the Uncrowned King of Malkieri. Ou quando Moiraine revelou aos aldeões de Two Rivers o seu passado histórico, uma história de bravura e resistência quase inteiramente esquecida.

Rand é uma personagem ainda demasiado inocente neste livro, tentando escapar ao seu destino, recusando-se a aceitar a verdade. É um pobre camponês em cujas veias escorre o sangue de reis e guerreiros, mas ainda irá levar tempo até aceitar a inevitabilidade do seu destino.

Até lá, deixamo-nos levar pelas suas aventuras e a dos seus companheiros, liderados por Moiraine, a Aes Sedai sempre ambígua e nunca de total confiança. Matt Cauthon é o comic-relief da série, Perrin Aybara é um bom rapaz, mas atormentado por coisas que não consegue ainda compreender. Egwene e Nynaeve, a seu tempo, irão ascender em poder e influência, tornando-se peças vitais no tabuleiro.

Em O Olho do Mundo temos o primeiro vislumbre, mas ainda nos seus primórdios, da arquitectura épica que ainda está para vir e que atingirá a força total no 4º volume, A Sombra Alastra, esse sim, um épico em todas as palavras. Conheceremos ainda muitos povos e os seus costumes, e cada um terá uma importância que Rand não poderá ignorar.

Para quem gostaria de ficar a conhecer um pouco melhor da verdadeira fantasia épica, Robert Jordan é leitura obrigatória.

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LW

Qualquer crítico que escreva sobre livros sabe como é tarefa ingrata tentar expor o cerne de uma obra como Dune em poucas palavras. É tão vasta como as areias do deserto que descreve de forma tão singular. A arquitectura do mundo concebido anda de mãos dadas com uma multitude de perspectivas, cada uma delas sendo passível de dar lugar a uma torrente de debates e ensaios, divagações, análises e interrogações sobre os propósitos do autor, Frank Herbert.

Obra fundamental de ficção científica e que capturou a imaginação de milhares de leitores ao longo de quatro décadas, desde o ano da sua publicação, 1968, Dune inicia a odisseia de um homem destinado a assumir o papel de Messias, que traz a salvação com uma mão e as sementes da destruição e insatisfação com a outra.

Finalmente de novo acessível ao público português, a reedição em vários volumes pela Livros do Brasil, na colecção Argonauta, vem colmatar uma falta grave sentida desde há muitos anos pelos amantes de literatura fantástica, forçados a recorrer às edições na língua original.

A história de Dune abrange séculos e remonta aos tempos da Jihad Butleriana, a cruzada perpetrada pelos homens contra toda a tecnologia e inteligência artificial, forçando à criação de indivíduos e sociedades humanas que recorrem a vários métodos para desenvolver capacidades mentais, como os Mentat, as Bene Gesserit e os navegadores da Guilda Espacial. A casa Corrino governa de forma indisputável o universo, mas o seu poder é contrabalançado pela federação galáctica, o Landsraad, que garante o cumprimento de leis e convenções.

No momento em que a narrativa do livro se inicia, o leitor é confrontado com uma intriga à escala planetária onde assumem o principal protagonismo várias casas nobres, os Atreides e os seus rivais Harkonnen, a Guilda e a casa Imperial que possui uma força notável de soldados temida em todo o universo, os Sardaukar.

As primeiras páginas começam por relatar a presença da família Atreides no planeta Caladan e a iminente partida para o planeta Arrakis, conhecido como Dune, um local desértico, inóspito e agressivo. O poder galáctico representado na pessoa do Imperador Padishah, Shaddam IV, decretou a atribuição da regência do planeta à casa Atreides, mas os Harkonnen, inimigos com quem disputam um feudo antigo, planeiam secretamente uma conspiração que culminará na destruição da casa Atreides.

Dune é um planeta privilegiado no mapa geopolítico por possuir a Especiaria, uma droga capaz de induzir poderes prescientes nos navegadores da Guilda, permitindo-lhes realizar viagens interestelares e, assim, deter monopólio nas viagens do espaço. De facto, a premissa central de Dune consiste no facto de quem controlar a Especiaria controlar também, por consequência, o planeta.

A casa Atreides é atingida no centro nevrálgico de forma cruel e inesperada, e é forçada a enfrentar a perda do seu líder, morto por traição. Mas o filho, Paul, herdeiro legítimo do selo ducal Atreides, sobrevive, refugiando-se no deserto com a sua mãe, a concubina Lady Jessica. Paul, então um adolescente, é forçado a crescer, mas o seu crescimento implicará aceitar a superioridade genética do seu ser e a abertura de todas as portas da sua mente.

Apercebe-se de que é o resultado de séculos de manipulações genéticas realizadas pelas Bene Gesserit, cujo principal objectivo era o de criar o Kwisatz Haderach, o Bene Gesserit masculino que quebrará as leis do espaço e tempo, revelando a habilidade de prever todas as avenidas que conduzem ao futuro. Mas a experiência tão ansiada pelas Bene Gesserit escapou ao controlo e detém vontade própria.

O rapaz inicia uma nova fase de aprendizagem, habitando entre os Fremen, o povo nativo de Dune, que aprendeu a conviver em harmonia com a hostilidade do deserto e o consumo intensivo da Especiaria. Ele é a figura messiânica há muito aguardada, aquele que aponta o caminho, assumindo uma nova persona, Muad’Dib, que liderará o Fremen na destruição da governação tirânica dos Harkonnen.

Como uma tragédia da Antiguidade, as personagens são colocadas num cenário intemporal em que se torna impossível escapar ao destino. A figura de Paul Atreides é reminiscente dos profetas que se aventuraram no interior do deserto, em busca de uma voz interior que lhes indicaria o rumo certo a tomar, indo esse rumo frequentemente em direcção a uma morte trágica. E no entanto, as palavras e formas de pensar destes profetas moldam e transformam todos, para a eternidade.

Uma personagem profundamente atormentada pela sua condição, Paul é afligido por visões de um futuro onde o seu nome irá servir de estandarte em guerras santas desencadeadas pelos Fremen, levando a todos os cantos do universo violência e morte. Paul é, acima de tudo, um ser humano aprisionado no seu estatuto de salvador e destruidor, como Shiva e Vixnu, Cristo e Maomé. Torna-se impossível ludibriar o destino que lançou as suas garras e aprisionou a sua vida, devotando-a a uma ideologia que foge ao seu controlo.

Ele será o pilar da nova sociedade que se irá erguer, e a sua história não deixa de ser reminiscente da história do profeta Maomé e da ascensão das tribos do deserto que, com o tempo, se tornaram guerreiros implacáveis, paladinos da Islamização.

A cultura Fremen criada por Frank Herbert, de facto, bebe muito da cultura árabe e das tribos nómadas do deserto, mas é essa apenas uma porção de um universo ficcional infinitamente rico onde a ecologia, filosofia, misticismo e ficção científica são elementos que desencadeiam um jogo político e social denso, mas profundamente absorvente.

Agora é possível desfrutar, uma vez mais, em português. Todavia, as opções do tradutor nem sempre são as mais acertadas, e não se pode deixar de estranhar a opção da editora Livros do Brasil em publicar o primeiro livro às fatias na colecção clássica da Argonauta, quando seria mais razoável publicá-lo em um volume, talvez dois, na colecção Argonauta Gigante.

Ainda assim, aproveite-se de novo esta oportunidade para ler em português Dune, o livro em que se inicia a história extraordinária do planeta Arrakis, história essa que estaria incompleta sem a história do homem e profeta, guerreiro e santo, místico e filósofo, Paul Muad’Dib, que habitou entre as dunas do deserto e veio a aprender todos os seus segredos de forma tão profunda e marcante.

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LW

O que é uma narf, interrogam-se os espectadores do último filme de M. Night Shyamalan. Outra interrogação pertinente que passa pela cabeça do público, o que pretende este filme? Chamar a atenção das pessoas para a importância das histórias e de como deve ser preservada a arte do contador de histórias de modo a que a vida ainda detenha algum sentido?

As intenções são nobres, mas o meio de as concretizar nem sempre bem sucedido. O melhor que posso dizer acerca de A Senhora da Água será o facto indisputável das suas ideias serem boas e merecerem palmas, mas a realização simplesmente não parece estar à altura, deixando-se levar por um enredo que roça, por vezes, o absurdo.

M. Night Shyamalan, ele próprio um dos protagonistas de Lady in the Water, (dispensando desta vez com as aparições hitchcockianas), tem lutado para sustentar as suas visões cinematográficas povoadas de elementos fantásticos e os seus próprios ideais sobre vida, morte e o mundo em que vivemos.

Em O Sexto Sentido, um rapaz é aterrorizado por visões dos mortos, até se aperceber da necessidade de enfrentar os seus medos de modo a que possa encontrar o seu lugar no mundo. Em O Protegido, um homem dotado de extraordinários poderes tem que lidar com a sua condição de super-herói num mundo gradualmente cada vez mais desprovido de salvação. A Vila, talvez o trabalho mais refinado e artístico do realizador, considero-o um exercício interessante sobre alienação e o desejo de salvaguardar tudo o que consideramos de mais precioso, para longe do perigo.

Em A Senhora da Água Shyamalan tenta alertar para a beleza das histórias, como podem redimir almas que sucumbiram a passividade e ao cizentismo de um mundo demasiado cruel. A narf, ou mehor, ninfa do mar (Bryce Dallas Howard), que é encontrada uma noite na piscina do condomínio no qual trabalha Cleveland Heep (Paul Giamatti), chama-se ela própria Story.

Bela e vulnerável, com uma fragilidade que quase comove o coração, uma rainha entre os da sua espécie, representa a metáfora perfeita para as histórias e é o tesouro do filme, o bem precioso pelo qual vale a pena assistir esta obra, mesmo que tudo o resto falhe. Ameaçada por forças maléficas, a ninfa procura refúgio em Cleveland Heep que terá que descobrir a sua história e desvendar os segredos do Mundo Azul.

Mas depois observamos o que rodeia a ninfa. E torcemos o nariz. E remexemo-nos desconfortavelmente na cadeira. Quase pestanejamos de sono. Acabamos por encarar o grande ecrã com um cepticismo e uma incredulidade que é tudo o que o filme merece. A antiga lenda oriental da narf é revelada aos poucos, mas o que deixa um sabor amargo na boca é a figura um pouco patética de Paul Giamatti a procurar por aqueles que irão salvar a ninfa. Uma pessoa poderia compreender perfeitamente tudo como um conto de fadas. Claro que não estão em causa os elementos fantásticos do filme, mas até contos de fadas podem falhar em produzir uma suspensão de descrença se não forem bem concebidos.

A Senhora da Água torna-se um pote de ideias mal evoluídas e mal expressas, embora as intenções sejam meritórias. Desde a bizarra introdução da personagem de um escritor destinado a mudar o mundo com a sua escrita (o próprio Shyamalan num excesso de pretensiosismo), até um sem número de personagens unidimensionais e quase caricaturais, resta a tarefa ingrata de salvar o filme a Paul Giamatti, com uma interpretação que luta por ser convincente, e acima de tudo, a Bryce Dallas Howard, perfeita e extraordinária como narf indefesa e frágil.

Uma pessoa não se pode deixar de interrogar até se Shyamalan não tinha intenções de assumir este filme como uma crítica acerbada ao papel dos críticos de cinema/livros, empenhados em destruir e desconstruir analiticamente as obras de arte até não restar nada. A personagem do crítico, que até mesmo em frente do perigo, procede a analisar tudo de forma fria, é quem mais periga a vida de Story ao induzir Heep em erro. E quando ele diz a dado momento, Já não existe mais originalidade no mundo, não será M. Night Shyamalan a questionar o papel dos críticos, demasiado implacáveis no seu estatuto?

Mas independentemente das opiniões do realizador, a personagem do crítico, quando questionado sobre um filme que vira, diz algo que confesso não ser tão despropositado referir em relação ao próprio Lady in the Water, It sucked.

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Como foi aqui anunciado há alguns dias, o filme Mirrormask de Dave McKean foi exibido no Fórum Lisboa por ocasião do Festival de Cinema Independente. Não faltei a esta oportunidade no dia 24, onde ao longo de quase duas horas pudemos assistir, num auditório cheio, à exibição de Máscara de Espelho.
vendetta
Se o filme ganhou adesão nos festivais onde foi exibido e conseguiu a atenção do público terá sido em grande parte devido ao efeito Gaiman. O nome de Neil Gaiman já adquiriu nos últimos anos um efeito semelhante ao toque de Midas, transformando em ouro todos os projectos em que se vê envolvido. A notoriedade foi alcançada primeiramente no mundo da Banda Desenhada, através de Sandman, mas nos últimos anos a sua actividade de romancista permitiu-lhe um novo destaque, tornando-o um dos autores mais bem estabelecidos e reputados no meio e fora dele. Fantasias urbanas contemporâneas como American Gods, Neverwhere e Anansi Boys (brevemente publicado em português) combinam mitologia com elementos da realidade, construindo uma ficção que não se limita a contar histórias meramente pela arte do entretenimento, mas também como veículo de reflexão.

Mirrormask não é uma excepção à regra. A história envolve uma protagonista adolescente, Helena, filha de artistas de circo e que, ao contrário de muitas crianças, deseja apenas uma vida normal. Nas suas horas livres, demonstra talento para ilustração e nos seus desenhos constrói um mundo imaginativo. A relação conflituosa com a mãe e a vida de circo mostram-nos uma rapariga que passa o tempo em fantasias escapistas, e não é de estranhar então que os seus sonhos ir-lhe-ão abrir outras portas, a um mundo onde a palavra realidade não se aplica. Não fossem os sonhos um dos temas favoritos de Gaiman, proporcionando-lhe episódios férteis de criatividade.

Neste universo paralelo onírico, Helena aprende a verdade sobre as leis que regem esse mundo, ameaçado por uma rainha das trevas que procura por uma filha perdida, e que é na realidade o alter-ego da jovem, o seu Mr. Hyde. A filha da rainha das trevas deu uso a um encantamento, o mirrormask que lhe permitiu escapar para o mundo de Helena. Ambas trocam lugares e a pouco e pouco apercebemo-nos de que a rapariga se encontra enclausurada no próprio mundo ilustrado que criou e obtém vislumbres da outra Helena através de pequenas janelas. Para pôr fim à usurpação da princesa das trevas, a jovem terá que encontrar o encantamento Mirrormask.

Para um espectador familiarizado com o trabalho dos estúdios Henson, e especialmente para aqueles que passaram parte da sua infância ou adolescência a conviver com o show dos marretas, mas especialmente outros trabalhos como The Storyteller, Dark Crystal ou Labyrinth, filmes que saíram dos estúdios Jim Henson nos anos 80, e duas décadas depois adquiriram uma qualidade e um estatuto que os tornou bem amados e lembrados para todo o sempre, reconhece facilmente a marca Henson em Mirrormask nos cenários, na qualidade visual e etérea da fantasia, e nas próprias criaturas criadas que tão espantosamente ganham vida através da voz, dos gestos e expressões faciais.

Às vezes, aliando os efeitos especiais a uma realização competente assente numa história simples, consegue transcender-se essa simplicidade e obter um bom filme, mas este não é o caso.

Tenho sérias dúvidas de que Mirrormask consiga obter esse reconhecimento para a posteridade como esses trabalhos mais antigos que remontam aos anos 80. Esqueçamos o nome de Neil Gaiman nos créditos e temos nas mãos uma história bastante convencional e desinspirada que, nem por um momento, conseguiu incutir-me sense of wonder. Poderia ter sido uma história contada por um mestre contador de histórias, mas torna-se aborrecido no ecrã e nunca realmente apelativo. É um mundo de papel e cartão com uma personagem demasiado cliché, Valentine, um malabarista com uma interpretação e humor sofríveis, e todo o filme e a sua quest limitam-se a confirmar temas básicos e recorrentes na obra de Gaiman, nomeadamente, a identidade, o amor da família, mas principalmente, a passagem conturbada da adolescência para o mundo adulto, simbolizado na confrontação entre um mundo marginal e o mundo real. A criança terá que aceitar quem é e descobrir a suas próprias forças de forma a poder aceitar a realidade. É, no fundo, um teste.

Não importa o facto de ser um filme de baixo orçamento. Isso nunca foi um impeditivo para a realização de bons filmes, mas este é na realidade um filme medíocre e muito insatisfatório para um público cada vez mais exigente dentro do género, a nível de argumento. Teria feito talvez mais sentido nos anos 80, ao lado de obras como História Interminável, e mesmo este demonstra muito maior mérito, mas não agora, depois de termos visto, só para dar um exemplo, os soberbos filmes de animação de Miyazaki como A Viagem de Chihiro ou O Castelo Andante.

Esperava-se muito mais de Gaiman. Muito mais. Mas precisamente por causa da sua reputação, Mirrormask permanecerá na memória dos espectadores. O tempo julgará se será visto com uma opinião mais benéfica do que aquela que lhe atribuo hoje.

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Remember, remember the 5th of November
Gunpowder, treason and plot;
I know of no reason, why the gunpowder treason
Should ever be forgot.

Esta rima popular inglesa relembra um momento em que uma figura histórica inglesa, Guy Fawkes, membro de um grupo de católicos conspiradores, falhou na sua tentativa de bombardear o Parlamento, em 1605, e assassinar o rei Jaime I. As verdadeiras razões que originaram a conspiração ainda hoje permanecem largamente desconhecidas, mas o que é certo é que Fawkes foi capturado e executado por traição. O que não impediu que ganhasse estatuto de culto e que ainda fosse relembrado, quatrocentos anos depois, numa celebração anual a 5 de Novembro.

É com a história, um tanto ou quanto romantizada, deste conspirador que abre o filme V de Vingança ( V for Vendetta) do realizador James McTeigue, mas admitamos, um realizador fantoche nas mãos do talento criativo dos irmãos Wachoswki, autores do guião. E os irmãos Wachowski, para quem viveu em Marte nos últimos seis anos, são os mentores do fenómeno Matrix.

vendetta

O filme retrata a luta de um homem, Guy Fawkes ressuscitado, que oculta o rosto por detrás de uma máscara e assume-se como principal arquitecto de um plano que visa derrubar o governo fascista, detentor de absoluto poder numa Inglaterra futura e distópica. Auto-intitulado como V, torna-se a encarnação de um ideal de resistência e revolução que não hesita em recorrer a qualquer meio para fazer passar a sua mensagem e atingir os seus fins.

Na origem da personagem intrigante de V está o argumentista Alan Moore e o artista David Lloyd que deram à estampa pela primeira vez a odisseia deste homem de identidade desconhecida em 1982, na extinta magazine britânica Warrior. Seria o início de uma colaboração que culminou na colectânea de todas as séries impressas em formato graphic novel, sob os auspícios da DC Comics. As relações entre Alan Moore e a DC Comics são um assunto que faria correr muita tinta e discussão, e sobre o qual não me irei debruçar. A ruptura entre o argumentista e a companhia deveu-se a uma série de incompatibilidades que já vinham desde os anos 80 e atingiram a gota de água com o presente filme. Como consequência, a pedido de Alan Moore, o seu nome não é mencionado nos créditos. Para uma melhor compreensão dos problemas que deram origem a este facto lamentável, recomendo a leitura de uma entrevista recente de Alan Moore e que pode ser lida no seguinte site.

Alguma crítica cinematográfica portuguesa tem vindo a referir que esta decisão da parte do argumentista deveu-se essencialmente ao seu desagrado pela adaptação de V for Vendetta, quando na verdade era uma decisão inevitável, independentemente do filme ser uma obra-prima ou não. Aliás, havendo algum filme a culpar é, sem dúvida, a péssima adaptação de A Liga dos Cavalheiros Extraordinários.

V for Vendetta insere-se numa longa linha de literatura distópica que já se iniciara no séc. XIX, vindo a ganhar contornos bem definidos no séc. XX, com autores inovadores e que actualmente dispensam apresentações; Zamyatin, Huxley, Orwell. É de facto, num cenário tipicamente orwelliano, que se movem as personagens de Moore e Lloyd, e ao qual é prestada a devida homenagem através do actor John Hurt (que encarnou a personagem de Winston no filme 1984).

Nem sempre o traço de David Lloyd é preciso como deveria ser. Por vezes, não é fácil distinguir os rostos das personagens e a transição entre o enredo principal e as várias linhas secundárias da história, relacionadas com figuras de poder, também não o facilitam, mas, na verdade, a BD rompeu com os estereótipos de super-heróis e combatentes pela justiça, preocupando-se essencialmente em construir uma personagem que obriga o leitor a questionar os alicerces sociais e políticos, e a relação de quase demência estabelecida entre o indivíduo e o Estado que o governa, ou melhor, controla. Surgindo num contexto específico, o da governação Thatcher, Moore colocou em V as sementes do anarquismo, como ele deveria ser entendido na sua verdadeira definição, em contraponto a um estado totalitário que vigia, censura e silencia.

Mas para melhor compreender V, devemos olhá-lo à luz da sua relação com Evey Hammond, a rapariga que ele salva, numa noite, das garras da polícia. Uma relação estranha e ambígua muito melhor explorada na novela gráfica, ao passo que o filme limita-se a uma linearização que culmina no cliché do amor declarado na hora da morte. Banalidades destas aparte, dever-se-á considerar o filme à luz de outros momentos mais interessantes.

É sempre a relação entre V e Evey que constitui o centro vital e dinâmico da história, atingindo novas alturas na cena da tortura e interrogatório. V força Evey a descer ao abismo da sua alma, de forma a poder melhor compreender todo o medo e a prisão em que tinha sido enjaulada. E embora seja uma nova Evey , menos inocente e mais sabedora, a que se insurge, não deixa de confrontar V com a sua própria natureza monstruosa. Nem sempre apoia os seus actos, e muitas vezes condena-o pela sua natureza implacável e vingativa.

Não há uma definição fácil e estereotipada desta homem mascarado que tanto é considerado um terrorista, como um defensor da liberdade. Um produto monstruoso do próprio governo que pretende destruir, V torna-se essencialmente uma ideia, um símbolo político que repudia a ideia de controlo e censura e é o desencadeador do processo que visa cima de tudo anarquia, mas não caos. Anarchy means “without leaders”, not “without order”. This is not anarchy, Eve. This is chaos.

Perante uma tão forte mensagem política, os irmãos Wachowski mantém-se fiéis ao espírito das ideias da BD, embora estas sofram uma actualização para os nossos tempos. De facto, e nunca pensei vir a dizer isto, mas o enredo do filme chega a fortalecer alguns aspectos fracos da BD, em especial, a justificação que conduziu à ascensão do governo fascista no Reino Unido; a ideia de um ataque biológico orquestrado pelo próprio governo contra os seus cidadãos encaixa que nem uma luva na já complexa teia de acontecimentos. E pode-se afirmar que, embora as histórias secundárias tenham sido eliminadas a bem do ritmo narrativo, permanece fiel à BD, recriando momentos emblemáticos como a dança ao som da jukebox, a história da actriz Valérie, e até o desconcertante vestido de Evey no encontro com o bispo.

Uma outra personagem de destaque trata-se de Gordon (que só partilha com o Gordon da BD o nome) e no qual encontramos a problemática da censura nos media. Com a personalidade incontornável do actor britânico Stephen Fry, Gordon tornou-se o homem do espectáculo forçado a submeter-se às regras do Partido. Mas a sua admiração pela arte e cultura obrigam-no também, à semelhança de V, assumir uma máscara e ocultar a sua persona. Não sem que antes decida realizar a sua própria vingança contra o Chanceler Adam Sutler e elaborar uma sátira pela qual acabará por pagar um preço elevado.

As cenas finais são talvez as que produzem um maior aturdimento no público , em especial a cena do dominó, enquanto Finch está sentado na esquadra a relatar as últimas notícias de caos e violência que começam a germinar na sociedade, por intervenção de V. Mas para um filme interessado em passar uma mensagem claramente revolucionária, não teria sido sensato manter bem definidas as fronteiras entre caos e anarquia? Quem vê o filme não julgará que basta o caos para derrubar um regime fascista, o bombardeamento de uns edifícios simbólicos para se iniciar uma nova era de paz e fraternidade? É nessa direcção que se revelam as maiores falhas de V for Vendetta e o tornam um produto inferior à grande linha de cinema distópico. Existe uma revolução, mas não existe uma reflexão sobre as consequências dessa revolução, apenas uma visão naïve de que os fachos devem ser eliminados, de modo a permitir que a liberdade prevaleça.

A graphic novel poderia já não ser a subtileza em pessoa, mas havia uma abordagem mais honesta e menos maniqueísta à questão, colocada em termos demasiado lineares no filme. E no fim de tudo isto sobra um filme com uma realização de pouco brilho, com alguma cinematografia desinspirada (basta ver a cena de forte carga simbólica em que é rapada a cabeça a Natalie Portman, totalmente desperdiçada), mas um argumento que deixa o espectador com muito para pensar e tavez seja adequado o momento em que chega, um momento em que a conjuntura política actual não dá azo a grandes optimismos.

Na interpretação, a voz de Hugo Weaving é teatral o suficiente para dar corpo à máscara. Natalie Portman bem tenta, mas ainda lhe falta alguma maturidade para um papel deste género. Samantha Morton teria sido uma escolha bem mais adequada para Evey, mas faltará a esta actriz o grau certo de estrelato. De um elenco secundário competente, sobressai John Hurt com a sua eloquência dominada pelo fervor e exaltação nacionalistas.

Em termos artísticos é que, infelizmente, V fica uns quantos furos abaixo da fasquia.
E convenhamos, não acrescenta nada de novo ao que já tinha vindo a ser escrito e feito anteriormente, com muito maior brilhantismo. Mas será talvez a obra que tenha capturado, com maior impacto, uma mistura de bom entretenimento com assuntos que exigem uma maior consciência e reflexão da parte do público.

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Do mundo da Banda Desenhada, chega-nos através da Devir uma série arrojada de fantasia, construída pela dupla Kurt Busiek e Carlos Pacheco, uma equipa já com provas dadas na série Avengers Forever.

Uma nova colaboração entre o escritor e ilustrador teve como resultado 6 números da série Arrowsmith, nomeada para o prémio Eisner, e que foram publicados na forma de graphic novel com o título Arrowsmith: So Smart in Their Fine Uniforms, conhecido em português como A Guerra da Magia.

Arrowsmith

Kurt Busiek dá nova vida às histórias de luta e coragem durante a I Grande Guerra, ao criar a personagem de Fletcher Arrowsmith, um rapaz natural de Connecticut, filho de um ferreiro, que se deseja alistar como aviador e combater contra os inimigos prussianos. Embora esta premissa não constitua nada de novo em relação às histórias de guerra, está longe de se tornar a típica história do soldado que se alista e combate nas trincheiras.

Até porque no mundo bélico de Kurt Busiek, a tecnologia foi substituída pela magia. As metralhadoras, granadas, gases e todo o arsenal utilizado nas primeiras décadas do séc. XX foram substituídos por encantamentos e feitiços. Ao lado de Fletcher, combatem ogres, trolls, dragões, em combate mortal contra outras criaturas míticas aliadas aos prussianos, vampiros e lobisomens. Em vez de aviões, são homens que sobrevoam os céus, numa aliança invulgar entre homem e dragão ( um pouco a lembrar a série dos Dragões de Pern de Anne McCaffrey), lutando com espadas e encantamentos.

Embora possa parecer forçada essa introdução da magia na sociedade europeia dessa época, é com uma espantosa adaptação e respeito às convenções da época que Pacheco e Busiek desenvolvem a história de Arrowsmith. Num traço excelente, elegante, vivaz e preciso, Pacheco reconstrói com rigor a arquitectura das cidades europeias do Continente, o vestuário de época, os trajes militares, combinando-os com enorme facilidade a elementos fantásticos. Gárgulas a ganharem vida no topo dos monumentos de Paris, exércitos de zombies a ameaçarem os habitantes que passeiam pelas ruas, experiências na Academia de feitiçaria tornam-se lugar comum numa época em que não se podem olhar a meios para atingir os fins.

Instalado já o cenário em que se vão mover as personagens, dá-se início então à odisseia de Fletcher Arrowsmith, um jovem que se deixa deslumbrar inicialmente por todo o idealismo tóxico que envolve a guerra. Um grande admirador dos aviadores da Divisão Aérea Ultramarina, Fletcher alista-se na Divisão contra a vontade paterna e começa o seu treino de aviador. Um jovem ingénuo e sem nenhumas qualidades excepcionais, Fletcher está longe do arquétipo de super-herói que salva vidas em perigo. Não quer dizer que Arrowsmith não cumpra o seu dever, mas ele é acima de tudo um jovem como qualquer outro que se alistou na guerra pelas razões erradas.

A pouco e pouco, o idealismo do jovem sucumbe ao desencanto e desilusão, e face às mortes dos seus camaradas, cedo nasce o sentimento de culpa por estar vivo enquanto os amigos morrem à sua volta. Kurt Busiek nunca comete o erro de permitir que a magia invada a sua história e se torne numa questão maniqueísta de luta entre o bem e mal. O mundo da feitiçaria é relegado para segundo plano, face à vontade do argumentista em expor uma crítica social incisiva sobre os horrores da guerra e o seu efeito nos soldados. A série vai progredindo numa direcção cada vez mais negra e as cartas que Arrowsmith escreve são uma evidência da sua perturbação e horror pelas atrocidades a que é forçado a cometer.

O ponto culminante é atingido na destruição acidental da cidade de Holbruck, provocando um sem número de vítimas civis. A consciência de Fletcher é atormentada pela desumanidade a que assistiu e os demónios libertados pelos feiticeiros reflectem os seus próprios demónios interiores que o vão consumindo. Cabe então a Arrowsmith voltar a encontrar um sentido de vida que justifique a guerra que destruíra a sua inocência, talvez alcançando esse sentido, em parte, graças ao amor e a amizade.

Arrowsmith: a Guerra da Magia trata-se no fundo de uma parábola da Europa dilacerada por guerra e que, embora recorra a artifícios medievais impressionantes e bem pesquisados, deseja assumir-se como uma reflexão sobre os horrores de um mundo que parece auto-destruir-se mas, apesar de tudo, Fletcher nunca se deixa abater e cair no desespero e ainda mantém a sua crença num futuro luminoso em que a vida possa ser celebrada.

Um excelente álbum de fantasia, e que dá nova vida ao velho cliché do jovem soldado inocente que morre lentamente e que vive na sombra dos seus tormentos. Mas Fletcher Arrowsmith resiste e aguardamos as suas próximas aventuras com grande expectativa.

Argumento: Kurt Busiek

Desenhos: Carlos Pacheco

Devir, Álbum US, 160 págs, cor PVP: 16€

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Farther west than west, beyond the land,
My people are dancing on the other wind.

A autora norte-americana Ursula K. Le Guin pertence hoje, sem contestação, ao panteão de escritores mais notáveis da literatura fantástica, tendo já transgredido as fronteiras do género e obtido reconhecimento literário e académico. O conjunto da sua obra revela uma inigualável mestria tanto no género da fantasia, como Ficção Científica.

Foi a sua saga Terramar – Earthsea a obra de fantasia que lhe conquistou admiração incondicional por parte do público leitor. É uma das suas mais adoradas criações e, embora inicialmente concebida para um público juvenil, tornou-se parte do imaginário popular fantástico e fonte de influência para inúmeros escritores.
Há um forte sentido do real criado nos livros, que perpassa por toda a magia, criando uma atmosfera única, sendo essa capacidade de verosimilhança uma das qualidades da saga mais realçada.

Concebida inicialmente como uma trilogia, publicada nos anos 70, A Wizard of Earthsea – O Feiticeiro e a Sombra, The Tombs of Atuan – Os Túmulos de Atuan e The Farthest Shore – A Praia mais Longínqua contam a história de um mundo onde a magia reside na Fala da Criação, a fala dos dragões, e onde os verdadeiros nomes não devem ser pronunciados. Os feiticeiros são indivíduos que aprendem um limitado domínio sobre essa linguagem, sempre cientes de que os seus actos de magia podem interferir no equilíbrio do mundo.

Ursula Le Guin conta, em especial, a história do feiticeiro Ged, desde a sua infância e maioridade, até atingir o estatuto de Arquimago de Terramar, já um velho sábio.
As aventuras de Ged nunca se limitam a meras acções heróicas, mas consistem em etapas marcantes que o ensinam a lidar com o seu poder e o mundo que o rodeia, um percurso de aprendizagem que vai desde a adolescência arrogante e orgulhosa, passando pela escuridão do mundo subterrâneo onde encontra a luz, indo os seus passos de encontro ao mundo das Sombras onde é forçado a suportar a prova mais cruel de todas.

Vinte anos mais tarde, a autora sentiu que ainda havia mais por contar e voltou a dar-nos notícias do mundo de Terramar. O 4º volume – Tehanu – marca uma viragem dentro da ficção que reflecte as próprias posições sociais da autora. É um volume não menos complexo ou subtil, mas o que observamos de heróico na trilogia, passa a adquirir uma faceta mais humana. A autora põe em causa muita da mitologia de Terramar e as suas personagens, sem nenhuma caracterização especialmente épica e heróica, ofertando-nos apenas um forte relato emocional centrado nas mulheres e na sua força e poder face à adversidade.

Posteriormente, surgiu uma colectânea de histórias – Tales from Earthsea (sem tradução disponível em português) – que preenche muitas das lacunas deixadas pela autora e servem de ponte entre Tehanu e o último volume – The Other Wind – publicado em 2001 e agora traduzido pela Presença sob o título, Num Vento Diferente.

Earthsea

A história começa com Alder, um feiticeiro humilde que procura a casa de Ged, nas montanhas de Gont. Alder é um homem atormentado pelos seus pesadelos de mortos que lhe imploram para que os salve da terra árida e desolada onde é seu destino passar a eternidade. Aterrorizado pela situação e pelo espírito da mulher que não está em paz, procura pela sabedoria do outrora Arquimago e confidencia-lhe os seus medos.

O Ged deste livro é um Ged que atingiu paz interior e já só irá jogar um papel secundário no desenvolvimento dos eventos. Apesar de não ter nenhuma solução para oferecer a Alder, pressente a importância dos sonhos e aconselha-o a ir de encontro ao rei Lebannen.

Na cidade de Havnor, encontra-se o rei, juntamente com Tenar e Tehanu. Lebannen recebe notícias perturbantes de que os dragões quebraram a promessa de habitar no Ocidente e invadiram terras habitadas pelos humanos, semeando o caos.

Com as notícias de Alder, juntamente com outras lendas e histórias relembradas, apercebem-se de que um grave desequilíbrio tomou conta do mundo de Earthsea, de alguma forma relacionado com a terra dos mortos. De modo a decifrar o enigma, todas as personagens ir-se-ão reunir na ilha de Roke, o centro do poder, e procurar desvendar a verdade que acabará por transformar os seus mundos para sempre.

No plano das personagens, uma interessa-nos particularmente pelo que ela própria é e poderá vir a ser, Tehanu. A criança cresceu e agora tornou-se uma jovem rapariga tímida e sempre a procurar refúgio em Tenar. O seu poder esconde-se por trás da sua aparente fragilidade, mas isso não a impedirá de cumprir o seu destino, para grande mágoa da sua mãe adoptiva.

São muitas as alusões nostálgicas aos quatro primeiros livros, desta vez exprimindo-se por várias vozes narrativas que constantemente evocam antigas memórias e se interrogam sobre o futuro. Todas as suas concepções sobre o mundo serão desafiadas e as próprias fundações da magia humana serão abaladas.

A questão da mortalidade e imortalidade ainda continua presente, já abordada no terceiro livro, e a capacidade de Alder para consertar aquilo que foi quebrado, irá para sempre mudar a face de Terramar. A mudança e necessidade por mudança é outra das qualidades essenciais da obra; uma mudança que restaura o equilíbrio através da união dos opostos, a união entre homem e mulher, humanos e dragões, vida e morte.

A sintonia entre o plano épico e o plano humano atinge um nível extraodinário e comovedor, e o final apoteótico em nada estraga a coerência do mundo, antes expande-lhe as fronteiras, encerrando com chave de ouro a saga.
Assim os admiradores de Terramar irão encontrar um livro mais profundo, imbuído de uma filosofia muito própria presente em cada diálogo e em cada descrição, e que consagra, uma vez mais, uma excelente contadora de histórias.

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1964 assistiu ao lançamento de um livro de literatura infanto-juvenil, Charlie and the Chocolate Factory, da autoria do britânico, de ascendência norueguesa, Roald Dahl.
A história gira em torno de um excêntrico proprietário de uma fábrica de chocolates – Willy Wonka – e o seu regresso à luz da ribalta, após um longo interregno de silêncio e clausura.

Wonka proporciona a possibilidade a cinco crianças, as felizardas contempladas com o bilhete dourado, de realizarem uma visita guiada à fábrica, desvendando todos os segredos por trás da produção dos deliciosos chocolates Willy Wonka. Um rapaz destaca-se especialmente, Charlie Bucket, que vive numa pobre e desolada casa com os seus pais e quatro avós.

Durante a visita, é-nos dado a conhecer os intrigantes Oompa-loompas, anões oriundos da Oompalândia, e os únicos com acesso à fábrica de chocolates. Aparentemente inofensivos, são as suas canções que denunciam o comportamento das crianças e pais, e as vão testando ao longo da visita. A história, ainda que acabe por encerrar um fundo moralista, não é desprovida de um tom negro e perturbante, tão característico dos contos moralistas para crianças.

Já realizada uma adaptação cinematográfica em 1971, por Mel Stuart, com Gene Wilder no papel de Willy Wonka, eis que o remake surge entre nós pelas mãos de Tim Burton, estreado nas salas nacionais no dia 11 de Agosto.

A estreia de um filme de Burton é sempre um acontecimento cinematográfico. O realizador tornou-se o ícone de uma certa expressão de cinema negro e sombrio, bizarro e tresloucado. Uma adolescência obcecada pelo gótico e o horror apenas acentuaram ainda mais as suas qualidades imaginativas e moldaram aquela que viria a ser a sua imagem de marca – o fascínio pelo bizarro e fantasioso, envolvido em cenários visualmente apelativos.

Tim Burton

Filmes como Beetlejuice, Eduardo Mãos de Tesoura, ou mais recentemente, Sleepy Hollow e Big Fish recriam um imaginário único e povoado de uma sensibilidade para tudo aquilo que habita nos recônditos marginais da mente humana. Até mesmo Batman não é livre da marca de Burton na caracterização de Gotham City e respectivas personagens.

No seu filme mais recente, Charlie and the Chocolate Factory, assistimos à sua quarta colaboração com Johnny Depp, um dos actores mais notados na última década pela sua versatilidade e capacidade em assumir papéis excêntricos.

Ainda que o filme seja predominantemente fiel à obra de Roald Dahl, o Willie Wonka de Burton teve um background muito mais desenvolvido, de forma a que assistimos a vários flashbacks que narram episódios da sua infância, filho de um pai dentista, e o seu atribulado início no mundo dos chocolates.

Depp confere, em medida equilibrada, a dose certa de excentricidade e infantilidade, pontuada pela memórias de um passado triste. A palavra certa para descrevê-lo será, talvez, patético. Um palhaço triste.
Mas isso não o impede de exercer uma boa dose de sarcasmo por sobre cada uma das crianças repelentes e petulantes que visitam a sua fábrica, incluindo os seus pais. À excepção de Charlie, as crianças irão aprender uma lição em boa educação que tão cedo não irão esquecer.

O ponto alto da excentricidade do filme reside, certamente, nos Oompa-Loompas, a cargo do actor Deep Roy. As canções incisivas , as suas múltiplas funções dentro da fábrica e as suas danças servem de excelente suporte secundário e proporcionam alguns dos momentos mais interessantes do filme, como a homenagem a 2001, Odisseia no Espaço, uma cena impagável de riso.

Freddie Highmore, a revelação de Finding Neverland, recomendada por Depp a Tim Burton, consegue comover como Charlie Bucket, o rapazinho livre dos vícios de uma educação demasiado mimada. Com a medida certa de seriedade e adoração por chocolates, Charlie ensina a Willie Wonka que o mais importante é o amor pela família.
Uma história aparentemente juvenil e moralista, mas que, por trás dessa aparência, esconde certos elementos perturbantes e que fazem o espectador pensar.

O próximo trabalho de Tim Burton tambem é aguardado com expectativas elevadas, a animação The Corpse Bride, prevista ainda para o ano 2005.

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