E para celebrar o Dia Internacional da Mulher, o destaque vai para algumas autoras do género que deram um contributo único à redefinição do papel da mulher na sociedade e exprimiram novas perspectivas femininas, capazes de desafiar as convenções.
Antes de mais, torna-se especialmente adequado citar o excelente artigo de Teresa Sousa de Almeida A Ficção Científica em Portugal (incluído na antologia Fronteiras publicada pela Simetria) sobre o conceito de FC.
Como todos os géneros que vivem nas margens ou nas fronteiras, a FC caracteriza-se pela capacidade de absorver todos os discursos e todas as vozes da chamada contra-cultura, transformando-se numa espécie de laboratório onde se ensaiam novas formas de expressão e dando lugar, como tantas vezes tem sido denunciado, a uma espécie de pilhagem da literatura oficial. Como sempre acontece, o seu carácter marginal parece ser a razão da sua própria versatilidade. Os que habitam nas franjas das instituições são invulgarmente atentos, não se adequam aos cânones e conhecem a liberdade que a imaginação permite.
O que importa extrair daqui, mais do que o carácter marginal da FC, é precisamente essa capacidade de ensaiar novas formas de expressão, priveligiando novas vozes que buscam por afirmação.
Três autoras do género, que reflectem uma escolha pessoal minha, representam uma nova afirmação da mulher que derruba a velha ordem e impõe uma revisão das convicções ultrapassadas da sociedade pós-guerra. Três autoras que exprimem o olhar feminino, durante largos séculos, mantido numa cegueira forçada. Um olhar que agora glorificam nas suas obras, destruindo as velhas barreiras e limitações. Muitas vezes servem-se dessa liberdade que a imaginação permite para denunciar as condições ou os constantes ultrajes cometidos à mulher, daí que nesse sentido se possa falar de um feminismo presente nas obras destas autoras, são elas Angela Carter, Ursula Le Guin e Margaret Atwood.
Autoras sobejamente conhecidas do grande público, com obras geralmente associadas ao movimento feminista da 2ª metade do séc. XX. Mas o que distingue especialmente estas três autoras, é não só uma defesa da mulher e do seu estatuto social, mas a sublimação dessa entidade singular que constitui a mulher, capaz de suportar os extremos; tanto lançada ao fogo do Inferno como ascendida ao Paraíso.
Para assinalar a escolha destas três autoras, selecciono uma obra de cada uma delas, particularmente representativa da temática feminista.
Angela Carter (1940-1992), autora e jornalista britânica, editou uma colectânea de contos sob o título The Bloody Chamber (1979), uma reinvenção dos contos populares tradicionais. O que é particularmente cativante nestas histórias é o modo como as personagens femininas são revalorizadas e retratadas de forma deliciosamente perversa e com uma sistemática destruição de todas as convenções. As princesas deixam de ser salvas por princípes encantados, para serem salvas pelas mães; a jovem e inocente rapariga deixa de temer os lobos maus e cede ao seu próprio desejo, despertando assim sexualmente. Uma subversão deliciosa da tradição, plena de sensualidade e erotismo.
Ursula Le Guin (1929-), escritora norte-americana, também ganhou notoriedade pela exploração de temas feministas nas suas obras, sendo talvez a mais notória The Left Hand of Darkness , descrição de um mundo onde não existem distinções de sexo. Mas a minha escolha pessoal recai sobre outra obra da autora, Tehanu (1990), 4º volume da saga Earthsea.
Em Tehanu , uma criança foi brutalizada e deixada ao abandono até ser recolhida por Tenar, uma antiga sacerdotisa. A criança, cujas marcas físicas de violência tornaram-na frágil e repelente à primeira vista, torna-se a protegida de Tenar, mas existe algo misterioso nela, poderes obscuros estão ocultos nessa menina, e por trás da frágil aparência esconde-se uma força ímpar, que transcende o mundo humano de Terramar. É um livro curioso dentro desta saga, tão só pela perspectiva feminina dominante, e acaba por comover com a descrição da força e coragem de Tenar e a pequena rapariga.
Margaret Atwood (1939-), escritora canadiana, escreveu uma obra de FC que dá continuidade à tradição distópica, The Handmaid’s Tale (1986), onde na República de Gilead, as mulheres vivem um autêntico pesadelo; foram tornadas indivíduos de segunda classe, sem direitos nem liberdade, e utilizadas para fins reprodutores. A Handmaid invoca o seu passado e descreve essa sociedade pós-apocalíptica em que as mulheres perderam todo o direito à sua individualidade e identidade.
Três olhares femininos, três abordagens sobre a mulher emancipada, ou pelo menos, com direito a essa emancipação. Mulheres que exprimem mulheres.
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